O sertanejo deixou de ser música de peão para ser música de patrão

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Enquanto no passado os sertanejos cantavam o esforço do trabalhador para dar o sustento de sua família, os atuais ídolos só falam de mulher, álcool e consumismo

Por Socialista Morena, compartilhado da Revista Fórum




Na foto: Gusttavo Lima e sua casa que mais parece uma loja da Havan. Foto: reprodução

CYNARA MENEZES

Para quem gosta de música caipira raiz, é impossível deixar de notar uma mudança radical que ocorreu no estilo ao longo das últimas três décadas. De música do trabalhador do campo, dos lavradores, o sertanejo virou, sobretudo a partir do surgimento do “sertanejo universitário”, a música do dono da fazenda, do playboy do agronegócio. Deixou de ser música de peão para ser música de patrão. Não é à toa a adesão de alguns ídolos sertanejos a Jair Bolsonaro.https://f8a5e46f25ac18fa120b619157a7cedd.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html?n=0

Questões sociais brasileiras, o povo passando fome, o desgoverno Bolsonaro, a carestia, o trabalho escravo no campo, nenhum desses temas parece tocar os corações de homens e mulheres que cantam a música sertaneja atualmente

Enquanto no passado os grandes nomes do sertanejo falavam de amor, mas também da dureza da vida na roça, do esforço do trabalhador para dar o sustento de sua família e até do homem que errou e foi preso, os atuais ídolos só falam de mulher, muito álcool (já escrevi sobre a geração “zuar e beber”) e consumismo. Exagero? Basta dar uma olhada nas letras do passado e comparar com as de hoje.

Tomemos como exemplo uma das primeiras duplas sertanejas da História (há quem sustente que foi a primeira), Mandi & Sorocabinha, que gravou seu disco de estreia em 1930. Mandi era professor, e Sorocabinha, lavrador na região de Piracicaba. A dupla denunciava as dificuldades do povo com os preços dos alimentos pela hora da morte em canções como Tempo RuimA Crise ou A Carestia –qualquer semelhança com 2022 não será mera coincidência…

“A crise que temo passando/ É uma coisa danada/ Tudo, tudo encareceu, ai, ai,/ O tostão não vale nada/ O pão que estão fazendo/ É uma triste amargura/ O padeiro tá na porta/ Mas passa pra fechadura/ O feijão subiu de preço/ Numa hora num instante/ O arroz ficou tão caro/ Vale mais do que diamante/ O toicinho subiu tão arto/ subiu tanto de valor/Que um capado no chiqueiro, ai, ai/ Vale mais do que um doutor”, diz a letra de A Carestia (1930).

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Os irmãos mineiros Zé Mulato & Cassiano, considerados a dupla caipira mais antiga em atividade, vieram para Brasília em 1969, onde ajudavam o pai, pedreiro e pintor de paredes. Entre seus sucessos, está As Vantage da Pobreza: “Se a bolsa cai ou se deixa de cair/ Se ela sobe o pobre não tá nem aí/ Mas essa coisa não deixa o rico dormir/ O pobre do rico não pode nem se divertir/ Com tanta grana ele nem liga pra muié/ Enquanto o pobre não abeia do tigé/ Eu tenho pena de quem vive na riqueza/ Que não conhece as vantage da pobreza”. Alguém consegue imaginar os atuais sertanejos cantando algo assim?

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E é preciso que se diga que os antigos caipiras também eram antifascistas: os célebres Alvarenga & Ranchinho gravaram A Farra dos Três Patetas em 1943, durante a Segunda Guerra Mundial, tirando onda dos líderes do Eixo, Adolf Hitler, o imperador Hiroíto e Benito Mussolini, comparados a… gado. “O seu Hitler bigodinho/E o japonês Hiroíto/ Fizeram uma pagodeira/ Junto com o seu Benito/ Comeram arroz com palito,/ Sarsicha com talharim/ A sobremesa dos dito/ Foi arfafa com capim”, diz a gozadora letra.

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O “pão com mortadela”, atualmente usado por bolsonaristas para atingir a esquerda com indisfarçável preconceito de classe, aparece em uma das letras mais emblemáticas da música caipira raiz e sua conexão com o trabalhador do campo, Franguinho na Panela. “No recanto onde moro é uma linda passarela/ O carijó canta cedo, bem pertinho da janela/ Eu levanto quando bate o sininho da capela/ E lá vou eu pro roçado, tenho Deus de sentinela/ Tem dia que meu almoço é um pão com mortadela/ Mas lá no meu ranchinho, a mulher e os filhinhos/ Têm franguinho na panela”, diz a canção, sucesso na voz de Lourenço & Lourival.

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Agora compara esse homem, que trabalha de sol a sol na roça para sustentar sua família, com o fútil marido adúltero de uma das canções de maior sucesso da dupla bolsonarista Zé Neto & Cristiano, Ela & Ela. “Como eu vou falar pro meu amor/ Que eu tô sofrendo por amor/ E que esse amor não é o dela?/ E se ela descobrir, eu perco ela e ela/ Se ela descobrir, eu perco ela e ela”, diz a letra, machista ao extremo.

Zé Neto é aquele que criticou a cantora Anitta pela “tatuagem no toba” e pelo uso da Lei Rouanet, o que acabou detonando uma investigação que chegou aos cachês milionários pagos por prefeituras de cidades pequenas aos sertanejos apoiadores do presidente, sem licitação. Um deles foi Gusttavo Lima, que acabou cancelando o show que daria em troca de um cachê de 1,2 milhão de reais em Conceição do Mato Dentro (MG), cidade com 35% da população em situação de pobreza.

As letras de Gusttavo Lima são simplórias: quando não está falando de amor, está falando de bebida; ou das duas coisas. “A desgramada me deixou na rua/ Feito um cão sem dono/ Eu fui encontrado num bar/ Em total abandono/ Cheirando a cachaça/ Sozinho na manguaça/ Amando ela agora só em pensamento/ Curtindo a deprê, morrendo de beber”, diz a canção Até a Garrafa Chora. Em 2020, o cantor e a Ambev foram alvo de investigação do Conar (Conselho de Autorregulamentação Publicitária) por beber excessivamente em uma live patrocinada pela cervejaria.

apologia ao abuso do álcool pelos atuais ídolos sertanejos já foi alvo de uma dissertação da mestra em Letras Mariana Lioto, da Unioeste, do Paraná, que analisou a obra de 48 cantores de música sertaneja; apenas sete deles não possuíam nenhuma música relacionada ao tema. Nada menos que 243 canções faziam referência ao consumo de bebidas alcoólicas. Zé Neto & Cristiano chegaram a gravar uma música cujo título é… Alô, AMBEV.

“Alô, Ambev?/ Dobra a produção aí, que a gente bebe/ Eu mandei saudade, ela mandou vida que segue/ Então segue sua vidona/ Eu sigo sofrendo e bebendo Brahma”, diz a letra. O clipe foi gravado dentro da sede da cervejaria em Agudos, São Paulo. 

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(O vídeo está restrito justamente por conta da bebida)

O momento de virada do estilo de música de peão para música de patrão ao que tudo indica começou a partir da segunda metade da década de 1990, com o surgimento do chamado “sertanejo universitário”. O perfil dos cantores mudou completamente: antes pessoas humildes, do interior, as duplas passaram ser integradas por rapazes brancos de classe média da capital (Campo Grande e Goiânia, principalmente) e formação universitária, legítimos descendentes da “lei do boi”, aquela que concedia cota para filhos de fazendeiros nas faculdades de Agronomia e Medicina Veterinária nas universidades federais do país entre 1968 e 1985 (mas dessa cota nenhum rico reclamava).

A temática dos sertanejos bolsonaristas tem tudo a ver com os barões do agronegócio e nada com os trabalhadores da agricultura. Qual sofrido peão do campo se identificaria com letras que só falam de relacionamento, baladas e coisas caras a que nunca terão acesso?

Na primeira década dos anos 2000, a mudança de foco para a ostentação aparecia em letras louvando carros de luxo, lanchas e até helicópteros e jatinhos, na esteira do mega hit Camaro Amarelo, de Munhoz & Mariano. “Agora eu fiquei do-do-do-do-doce, doce/ Agora eu fiquei doce igual caramelo/ Tô tirando onda de Camaro amarelo/ Agora você diz ‘vem cá que eu te quero’/ Quando eu passo no Camaro amarelo”, diz a letra, explorando o filão “mulher interesseira” que também aparece em Jatinho Particular, de Billy & Zaidan.

“Enquanto outros tiram onda de carrão/ eu vou de avião, jatinho particular/ e quando eu pego o avião pra decolar/ aí que a mina pira pra fazer amor no ar”, diz a letra. Não é coincidência que recentemente o cantor sertanejo Lucas Lucco tenha gravado uma canção com o mesmo título e temática: “Da boate pro carro/ Do carro pro hangar/ Chama as amiga pode chegar/ Tô com meus parça, só passear/ Reta fechada vamos voar/ Próxima parada não têm destino/ Uma ilha talvez o paraíso/ Traz mais vodca, whisky um brinde/ Mente quem disse que o céu é o limite”.

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“Comigo é mais em cima eu boto pra derreter/ Whisky vinte e um anos/ Meu perfume é francês/ Prepara o heliponto/ Que agora é minha vez”, cantavam Deyvid & Emanuel em Helicóptero, lá pelos idos de 2012. Na mesma época, Davi & Fernando arrebentaram com Colheitadeira do Vovô, hoje com 4 milhões de visualizações no youtube, que mostra dois agroboys roubando a máquina do avô fazendeiro para zoar e “pegar mulher”.

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Em Mulherada na Lancha, que parece ter sido escrita sob encomenda para a era Bolsonaro, mas tem mais de 10 anos, Matheus Fernandes canta, na mesma pegada mulher-bebida dos atuais sertanejos: “A mulherada tá na lancha com o copo na mão/ Dançando aquele arrocha, bebendo sem noção/ Eu já capotei, e elas ainda tão de pé/ Tá muito complicado segurar essas mulher’/ Pega o Black, traz o Johnnie/ Abre o Blue Label e tome, tome/ A mulherada tá bebendo igual aos home'”.

Infelizmente, as representantes do chamado Feminejo não vão em rumo diferente: em que pese certo empoderamento das mulheres louvado pela crítica, as letras seguem pelo caminho das relações amorosas e do “beber para esquecer” (algumas delas inclusive usam o codinome “patroas”). Questões sociais brasileiras, o povo passando fome, o desgoverno Bolsonaro, a carestia, o trabalho escravo no campo, nenhum desses temas parece tocar os corações de homens e mulheres que cantam a música sertaneja atualmente.

A temática da música dos sertanejos bolsonaristas tem tudo a ver com fazendeiros, barões do agronegócio e seus filhos, e nada com os trabalhadores da agricultura. Qual sofrido peão do campo se identificaria com letras de canções que só falam de relacionamento, baladas e coisas caras a que nunca terão acesso? Certamente cantar a dureza da vida do lavrador, como por exemplo o fato de que os trabalhadores que atuam nas cadeias de frutas estão entre os 20% mais pobres do país e que estão expostos aos agrotóxicos não renderia dinheiro, patrocínio de cervejaria e o apoio do agro. Ou de Bolsonaro.

UPDATE: Um leitor do site comentou que este texto não poderia deixar de fora Ladrão de Terra, de Jacó & Jacozinho (também gravada por Tião Carreiro e Pardinho).

De fato, dêem uma olhada na letra.

“Tinha eu quatorze anos quando deixei meu Estado

Meu pai era sitiante, trabalhador e honrado

Por esse mundão de Deus eu dei murro no pesado

Quando a sorte me ajudava os meu plano foi cortado

Triste notícia chegava

Meu destino tranformava

Eu fiquei um revoltado

Meu pai tinha falecido, na carta vinha dizendo

As terras que ele deixou minha mãe acabou perdendo

Para um grande fazendeiro que abusava dos pequeno

Meu sangue ferveu na veia quando eu fiquei sabendo

Invadiu as terra minha

Tocaram minha mãezinha

Pra roubar nossos terreno

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Eu voltei pra minha terra foi com dor no coração

Procurando meu direito eu entrei num tabelião

Quase que também caía nas unha dos gavião

Porque o dono do cartório protegia os embrulhão

Me falou que o fazendeiro

Tinha rios de dinheiro

Pra gastar nesta questão

Respondi no pé da letra não tenho nenhum tostão

Meu dinheiro é dois revólveres e bala no cinturão

Se aqui não tiver justiça para minha proteção

Vou mandar os trapaceiro pra sete palmo de chão

Embora saia uma guerra

Vou matar ladrão de terra

Dentro da minha razão

Negar terra pros caboclo ai ai

É negar pão pros nossos filhos ai ai

Tirar a terra dos caboclo ai ai

É tirar o Brasil dos trilho ai ai

Nós tava de onze a onze na parada nesse dia

Os pobre é carta baixa e os rico são as manilha

Foi uma chuva de bala só capanga que corria

Foi pela primeira vez que o dinheiro não valia

O barulho acabou cedo

Entregaram foi de medo

Terras que me pertencia

Na cerca de minha terra ai ai

Quem mexer ninguém imagina ai ai

Os arame são de bala ai ai

E os mourão de carabina ai ai…”

Alguém imagina Gusttavo Lima ou qualquer um dos atuais sertanejos defensores do latifúndio cantando uma música dessas?

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