O setembro é amarelo, o suicídio é preto

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Por Agostinho Vieira, compartilhado de Projeto Colabora – 

Dados do Ministério da Saúde mostram que jovens pardos e negros têm 50% mais chances de cometer suicídio do que os brancos

Em 2016, para cada 100 suicídios entre adolescentes e jovens brancos, havia 145 entre adolescentes e jovens negros. Foto Ian Hooton

O mês de setembro está terminando, amarelo de vergonha. Os motivos são vários, e vão desde as mentiras que um certo presidente contou na Assembleia Geral da ONU até os incêndios criminosos no Pantanal. Vergonha também por nos fazer lembrar que jovens negros e pobres seguem encabeçando a lista de brasileiros, desesperados, que foram levados a acabar com a própria vida. Infelizmente, os dados mais recentes do Ministério da Saúde ainda são os de 2016, divulgados em 2019. Mas não há nenhum indício de que a situação tenha melhorado de lá para cá. Muito pelo contrário. Naquele ano, para cada 10 jovens, entre 10 e 29 anos, que cometeram suicídio, seis eram pretos ou pardos. Quando se considera apenas as vítimas do sexo masculino, as chances de um negro se matar são 50% maiores do que as de um branco. Por que será?




Enquanto vivermos em uma sociedade radicalmente racista, que considera esse jovem negro como uma pessoa inferior, vagabunda, destinada ao tráfico ou à marginalidade, será muito difícil mudar essa situação

Wania Cidade
Psicanalista

A psicóloga Luciene Lacerda, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), não tem dúvidas na hora de elencar as razões: o racismo estrutural, a falta de perspectivas e a desesperança. “A situação desses meninos, muitas vezes é desesperadora, a violência que os cerca, a insegurança nas cidades, a desigualdade, a falta de opções de cultura, não poder estudar o que querem, não ter oportunidade de emprego…”

Um levantamento ainda incompleto calcula que, em 2019, foram mais de 13 mil suicídios no Brasil. Arte AFP
Um levantamento ainda incompleto calcula que, em 2019, foram mais de 13 mil suicídios no Brasil. Arte AFP

A própria cartilha do Ministério da Saúde “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros 2012 a 2016” reconhece o racismo como um dos fatores de risco para o suicídio. Rejeição, discriminação e racismo são fatores determinantes de risco para o suicídio, segundo o ministério. De acordo com o documento, o estigma em torno do suicídio pode ser ainda maior quando há questões raciais envolvidas: “Muitas vezes as queixas raciais podem ser subestimadas ou individualizadas, tratadas como algo pontual, de pouca importância, o que acaba culpabilizando aquele que sofre o preconceito”, atesta o relatório.

A psicanalista Wania Cidade, ex-presidente da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro, diz que o racismo está tão arraigado na nossa sociedade que ele começa antes mesmo desses jovens nascerem: “Apesar de a situação ter melhorado nos últimos 20 anos, com o sistema de cotas, o investimento em cursos técnicos etc, a grande maioria dessa população continua sendo pobre, sem acesso a saúde, educação e habitação de qualidade. Sem recursos básicos de sobrevivência. É óbvio que isso contribui para o surgimento de estados depressivos”.

O psiquiatra Juliano Moreira (1983-1933). Foto Reprodução
O psiquiatra Juliano Moreira (1983-1933). Foto Reprodução

Pouca gente sabe disso, mas dois dos principais nomes da psiquiatria e da psicanálise no Brasil eram negros. O baiano Juliano Moreira (1983-1933) ingressou na Faculdade de Medicina da Bahia aos 13 anos e foi o primeiro professor universitário brasileiro a incorporar a teoria psicanalítica no ensino da medicina. Já a paulista Virgínia Leone Bicudo (1910-2003) foi a primeira mulher a fazer análise na América Latina, e a primeira a escrever uma tese sobre relações raciais no Brasil. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, em 1998, ela contou: “Eu fui criada fechada em casa, quando saí foi para ir à escola e foi quando, pela primeira vez, na escola, a criançada começou: negrinha, negrinha. Quando eu estava em casa, eu nunca tinha ouvido. Então eu levei um susto”. E continuou: “Eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro com a de fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história”.

Virgínia Bicudo (1910-2003), a primeira mulher a fazer análise na América Latina. Foto Reprodução
Virgínia Bicudo (1910-2003), a primeira mulher a fazer análise na América Latina. Foto Reprodução

Essa proteção na psicanálise, buscada e alcançada por Virgínia Bicudo, ainda parece ser algo distante para os pacientes negros, especialmente para os homens, como ressalta Luciene Lacerda, que por 18 anos atendeu no Hospital Universitário do Fundão: “As mulheres até aparecem e falam sobre os seus problemas. Os homens não. Existe um papel social a cumprir. O homem negro carrega o estigma da força, da virilidade, do trabalho braçal. É como se ele não pudesse falar sobre os seus sentimentos. Se levarmos em conta que o acesso ao atendimento no serviço público já não é o melhor possível, estamos juntando o inútil ao desagradável”, conclui.

Wania Cidade concorda com a colega, mas lembra a existência dos Centros de Atenção Psicossocial, os chamados Caps, bem como das Clínicas Sociais, que podem ser encontradas em praticamente todas as universidades do país que possuem cursos de psicologia: “Tanto os Caps quanto a Política Nacional de Saúde da População Negra vêm sofrendo cortes e esvaziamento nos últimos anos, mas são instrumentos que existem e devem ser usados. As famílias precisam ser orientadas sobre eles para poderem ajudar os seus jovens”, explica.

O Setembro Amarelo é uma campanha de prevenção ao suicídio organizada pelo CVV (Centro de Valorização da Vida) e pela Associação Brasileira de Psiquiatria. Assim como o Outubro Rosa (câncer de mama), o Novembro Azul (câncer de próstata) e o Dezembro Vermelho (Aids), ele tem como objetivo chamar a atenção para um problema grave de saúde pública. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que os suicídios sejam responsáveis por 800 mil mortes anuais no mundo. Cerca de 80% acontecem em países de média e baixa renda. Ainda de acordo com a OMS, o Brasil estaria entre as oito nações com o maior número de casos. Em média, nos últimos anos, o país teve cerca de 11,5 mil registros, mas a tendência é de crescimento. Um levantamento ainda incompleto calcula que, em 2019, foram mais de 13 mil suicídios.

As mulheres até aparecem e falam sobre os seus problemas. Os homens não. Existe um papel social a cumprir. O homem negro carrega o estigma da força, da virilidade, do trabalho braçal. É como se ele não pudesse falar sobre os seus sentimentos

Luciene Lacerda
Psicóloga

Mas a situação ainda pode ficar pior. Em um artigo para a Folha de S. Paulo, o Dr. Drauzio Varella, afirmou que o impacto na saúde mental será a sequela mais devastadora da pandemia de covid-19: “Embora o vírus possa provocar complicações tardias pulmonares, cardíacas, vasculares, renais, musculares e cerebrais, entre outras, o impacto na saúde mental será mais devastador, justamente por afetar uma área já problemática anteriormente”. Antes do coronavírus, a OMS já previa que, a partir de 2020, a depressão se tornaria a principal causa de absenteísmo nas empresas.

O Brasil é um dos signatários do “Plano de Ação sobre Saúde Mental 2013-2020” da OMS, que busca a redução da taxa de suicídio em 10% até o final de 2020. No entanto, nos últimos dez anos, o número de suicídios no país cresceu, em média, 7%. E, mais uma vez, de forma desigual. Em 2012, para cada 100 suicídios entre adolescentes e jovens brancos, havia 134 entre adolescentes e jovens negros. Quatro anos depois, em 2016, essa proporção subiu de 134 para 145 negros mortos para cada grupo de 100 jovens brancos.

E a desigualdade, sem dúvida, está entre as causas dessas estatísticas. Historicamente, os negros vivem uma situação de marginalização que dificulta a sua inserção na sociedade. É o chamado racismo estrutural. Trabalhadores negros, com a mesma qualificação dos brancos, recebem entre 30% e 40% a menos. De acordo com o IBGE, em todos os níveis de instrução, a taxa de desemprego é significativamente mais elevada entre a população preta ou parda do que entre a população branca. Entre os que têm ensino superior completo, a taxa de desemprego é de 5,5% para os brancos, mas sobe a 7,1% entre pretos e pardos. Na faixa com ensino médio completo ou superior incompleto, os brancos têm taxa de desemprego de 11,3%, contra 15,4% dos pretos e pardos. A situação é ainda mais dramática quando se considera que 54% da população brasileira é formada por pretos e pardos.

Tanto Luciene quanto Wania lembram o impacto que cada tentativa de suicídio ou ato consumado tem sobre as famílias e os amigos das vítimas. Especialmente as mães. As repercussões negativas vão desde a culpa até a raiva, passando pela depressão que pode levar a novos casos de suicídio. “É como se fosse um assassinato. Alguém morre precocemente. Todos sofrem muito e por muito tempo. A primeira pergunta é: ‘Por que eu não percebi?’. Enquanto vivermos em uma sociedade radicalmente racista, que considera esse jovem negro como uma pessoa inferior, vagabunda, destinada ao tráfico ou à marginalidade, será muito difícil mudar essa situação”, lamenta a psicanalista Wania Cidade.

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