Por Enio Squeff, Ateliê Squeff –
Num dos episódios da Odisséia (que eu tive a felicidade de ilustrar em 1996, para a Ateliê Editorial), Ulisses faz uma ilação que à primeira vista, nega Freud. Para Ulisses ou Odisseu, os homens vivem em torno do estômago. Alguém admitirá que o instinto sexual está subscrito na constatação. E é verdade. Um amigo paraibano, já falecido, resumia a ideia de outra forma, a citar um ditado que ele dizia ser de sua terra: “Mió que muié, só arroz com ôvo”. Não se pode negar que depois do arroz com ôvo, o sexo – para homens, mulheres ou gays, por favor – não seja o complemento fundamental. Mas que não se subestime o estômago: é esse o busilis da questão brasileira. No pós-golpe, para parte da população brasileira, o arroz com ovo, antecipa a sobrevivência. Com sexo inclusive.
É uma questão primacial que, no entanto, tem contra si os bem pensantes para os quais o que importa certamente seja apenas e tão somente, o caviar, com o Romanée-Conti a ser bebido no Fasano, num fim de noite, no jantar. Quando então se falará da economia; para eles, a “real”. E que nunca inclui o estômago do povo.
A indiferença desta gente com fome, num dos países mais ricos do mundo, como o Brasil, raia, no fundo, à estupidez. Não lhes passa que 14 milhões de desempregados – digamos que as estatísticas sejam verdadeira, o que, a rigor, não importa muito – constituem tudo o que o “exército de reserva” do capitalismo necessita para alimentar o seu outro lado, o lucrativo negócio das drogas e do crime organizado? E que um dia a violência cairá em seus sempre higiênicos colos?
Para eles, a fome e a miséria é uma assunto a ser tratado após o que eles chamam de “organização da economia” – algo como combater as epidemais depois de construídos os hospitais. De preferência, com o sobrepreço de praxe.
Claro que falar disso para um douto economista recém saído da faculdade, onde o que ele mais aprende é como não se preocupar com o estômago dos seus compatriotas – senão com esse ente abstrato chamado “mercado” – é como falar de neve para um nordestino do semi-árido brasileiro. Ou de tempestade de areia para um gaúcho da fronteira. São bobagens, digamos.
Quando Fernando Collor foi eleito, num primeiro vagido do coxiismo que avassalaria anos depois o Brasil, um secretário de governo foi inquirido por um repórter da Rádio Eldorado (então do Estadão), por que razão ele cortara o programa do leite para crianças carentes. Sua resposta (que não dispensou o economês da época), supreendeu pela conclusão: “Afinal, – disse – o corte do leite é por apenas três meses”.
Não ocorreu ao repórter, tentar saber do secretário de abastecimento da época, como viveriam as crianças carentes sem leite, por “apenas”três meses.Ou por apenas dois dias.
Na verdade, a imprensa da época, que torceu e distorceu tudo contra Lula, para que Collor assumisse e ensaiasse o primeiro desastre do Brasil – esse que se desenha concretamente na era Temer – não questionava nada do seu candidato. Depois, porém, aconteceria o sequestro das poupanças, a quebradeira geral e, consumada a hecatombe, Collor então caiu.
Não aprendemos a lição. Continuamos na ilusão das mágicas economicistas que convencem o sujeito que o principal não é nem o arroz com ovo, muito menos sexo (já que esse é um tema tabu para os evangélicos, que sustentam Temer e Eduardo Cunha, o do “Jesus.com“) – mas a adesão cega ao tal mercado. Que pode ser tudo, menos inteligente.
Que isso, porém, tem a ver com o Ulisses? Talvez a destruição de Tróia – que afinal aconteceu por causa do sexo: Paris sequestrou Helena de Tróia, deu-se a guerra : e todos perderam. Mas existem respostas. Uma delas é mesmo a que Ulisses deu, quando admitiu que os homens pensam e vivem pelo estômago. Não é, naturalmente, o que pensam os neoliberais que comandam o País. E que pensam e vivem para seus jantares regados ao melhor. Para depois, então, freudianamente, o sexo.
Mas será um dia. E talvez já não sem tempo.