E o doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, na coluna “A César o que é de Cícero”, nos leva á reflexão sobre as ditaduras e o quanto que os opressores querem que esqueçam o quanto fomos oprimidos. Filmes fundamentais para que não esqueçam as atrocidades impostas por criminosos que, de uma forma ou de outra, deixaram de ser punidos. Mas a história cobra a impunidade.
Na cena final do filme “Mães Paralelas” há uma exumação. É uma cena curiosa, pois a princípio foi filmada em um estilo que não é aquele com o qual está associado a figura de Pedro Almodovar. É um tanto silenciosa, discreta e, ainda assim, impactante. Da cena se presume que se trata dos restos mortais de pessoas que se opuseram a ditadura de Franco (1936-1975). Exumar os diversos corpos enterrados em vala comum para restituir à família o que lhes foi roubado: a própria história.
Como qualquer ditadura, a de Franco agiu com brutalidade para dar cabo dos seus opositores: simplesmente os eliminou sempre que possível. O objetivo era riscar a oposição do mapa. Oposição, não: o inimigo. Em tal processo, corre risco de morte qualquer que minimamente se oponha ao regime.
E eis que depois quarenta anos do fim da ditadura franquista, em 2015 passa uma lei que se afirma como um “pacto de esquecimento”. Quer dizer, é como se dissesse que o assunto “a ditadura franquista” estivesse morto e enterrado, que dali em diante era bola pra frente. É impressionante o campo semântico utilizado: quem defende a anistia da maneira que está posta fala que não se deve reabrir feridas que já estão saradas, que se deve pensar no futuro.
Só que o assunto ditadura franquista não está encerrado. A ferida não sara, cara pálida. Recuperar o passado é questão urgente.
O documentário “O Silêncio dos Outros” (dir. Almuneda Carracedo, 2017) acompanha a luta de algumas pessoas por justiça na Espanha. Pessoas para quem a ditadura franquista é incontornável. Há entre elas aqueles que participaram de luta armada, como é o caso de Chato; alguns, entretanto, de luta armada não participaram: eram camponeses pobres que tiveram seu pais executados jogados em valas comuns, como é o caso de Maria Martin. E, por fim, como se não bastasse tal violência, houve o caso do sequestro sistemático de bebês, algo que também está ligado a ditadura franquista, como o documentário esclarece.
Pergunte-se de passagem: o que foi feito com esses bebês? Conhecer o destino dessas crianças é entender o funcionamento de um período em que aquele que está perto do poder pode tudo, até mesmo sequestrar crianças. Aliás, não é este o assunto do filme argentino “A História Oficial”, de Luis Puenzo? A protagonista, professora de história de liceu, não vai aprender aos poucos como sua história pessoal está entrelaçada à história argentina dos tempos de ditatura?
É bom se lembrar: com o tempo, as pegadas da história tendem a se apagar. Ou a se amontoarem, formando um estranho labirinto. Há sempre alguém que malandramente quer empurrar o lixo para debaixo do tapete. Estes não são os vencidos.
Em tempo:
“Mães Paralelas” e “A História oficial” estão disponíveis na Netflix. “O Silêncio dos Outros”, no streaming gratuito do Sesc Digital.
Sobre o autor
Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.
Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019), Circo (de Bolso) Gilci e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.