O soldado da Tropa de Choque, a bomba, o sangue e uma transformação

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Por Washington Luiz de Araújo, jornalista – 

Ele tinha oito anos quando viu o pai morrer na sua frente. Estavam andando por uma ruela na favela onde moravam, quando houve troca de tiros entre policiais e traficantes. Uma bala perdida pegou seu pai de cheio, na testa. A partir daquele dia tornou-se um menino arredio, de pouca fala, muito observador. E assim foi crescendo, com o esforço da mãe, que costurava e lavava roupas para sustentar a família, e conseguia, de uma forma ou de outra, estudar.  No restante do dia, ao contrário dos amiguinhos que jogavam bola e soltavam pipas, mirava o  horizonte, do alto da favela, e pensava na vida. “Que vida é essa?”, questionava-se. Quando fez 18 anos serviu ao Exército e de lá seguiu para a Polícia Militar. Era uma saída daquela vida que levava. Ou não.




No quartel da PM, era o primeiro nos exercícios físicos e no esporte. Foi ficando musculoso, mas sempre caladão, com aquele olhar perdido. Então  resolveu entrar para a Tropa de Choque.  Sabia que o esforço despendido até ali seria bem maior.

Demorou algum tempo e saiu em sua primeira missão, um jogo de futebol na Vila Belmiro, Santos e  Corinthians. Enfrentou com sua cara de poucos amigos as torcidas organizadas e dispersou uma briga numa das ruelas próximas ao estádio,  onde houve um confronto entre facções das  duas torcidas.

Pescoções em alguns, bombas de gás lacrimogêneo na maioria e prisões dos mais afoitos. Assim estreou. No quartel, aprendia como combater o inimigo, como dispersar e como ter sangue frio para ouvir gritos e palavrões e só depois agir. Sempre obedecendo ao comando.

Começou a perceber que os companheiros estavam viciados em adrenalina, que adoravam partir para o confronto. E, como era um grande observador, passou  a sentir que também  o próprio sangue esquentava mais rápido, que a vontade de ir pra cima estava cada vez mais acentuada.

E chegaram as manifestações políticas. A Tropa de Choque ia a  todas.  Em boa parte delas não intercederam, ficavam olhando, observando – ele e seus companheiros. Mas, com o aumento no número de manifestantes, a ordem era de não mais só observar: agora era agir. E, insuflados pelas palavras de ordem, que consideravam contra eles, ofensas pessoais  e não apenas  contra a corporação, o sangue começou a ferver. “Não acabou. Vai acabar. A Polícia Militar”.

As outras palavras de ordem dos manifestantes contra o golpe, contra a perda de direitos sociais, entravam por um lado do capacete e saíam pelo outro, mas aquele grito que se referia ao seu trabalho, ao seu ganha-pão,  os impregnava e,  diante do  menor vacilo da moçada, dá-lhe porrada, bomba de gás lacrimogêneo, spray de pimenta e  bala de borracha.

Até que chegou o dia em que o estilhaço de uma bomba foi direto nos olhos de uma mocinha de  18 anos, universitária. Poderia ter saído de sua arma, mas ele não sabia. O sangue da moça se espalhando pelo rosto o marcou. Ele se lembrou do pai, vítima daquela bala perdida que o matou.  A tropa se dispersou, mas aquela cena  ficou em  sua cabeça. E na sua mente também passou a pipocar não só a palavra de ordem que pedia o fim da  PM, mas também a do golpe, a que falava em acabar com os direitos sociais, com o décimo terceiro, com as férias.

Aprendeu no quartel a não levar em consideração o que se falava  nas ruas, nos grandes aglomerados, mas não adiantou.  Passou a ouvir em alto e bom som tudo o que falavam os manifestantes. Foi tentar entender, de verdade, o que queriam dizer com  “acabar com a Polícia Militar”. Leu que em outros países mais adiantados a polícia é civil, que não tem o tom “militaresco”, de guerra, empregado no Brasil.

Assim, começou a ir  para o seu trabalho nas manifestações com um outro olhar, mais contemplativo, pragmático. Ao contrário dos companheiros de farda, via-se a si mesmo  naquela garotada  que reclamava do fechamento das escolas, do roubo da merenda, do golpe parlamentar. Ficava pensando na adolescência, quando testemunhou  e viveu tanta injustiça na favela onde morava, e que não podia fazer nada.

Procurava não jogar mais bombas a esmo, no meio da multidão, tentava até conversar com um ou outro garoto. E percebeu, então:  tinha perdido a pegada. Não  servia mais para aquele trabalho. Pediu para sair. E saiu. Passou a trabalhar como  segurança num banco e estudar à  noite.

Está cursando  Direito e procura cada vez mais entender os movimentos sociais, o que significa a perda de direitos tão arduamente conquistados, a perseguição aos mais pobres. Tem percebido que, mesmo quando estava todo paramentado para uma guerra, seu adversário era muito parecido com ele.  Mesmo no entra-e-sai,  no bloqueio das portas do banco,  observa as pessoas, e, quando vê um mais exaltado, que ameaça até tirar as vestimentas por não conseguir entrar, é o primeiro a conversar, a explicar, a acalmar.

Que vida é essa, afinal de contas?

Foto da Mídia Ninja

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