Por Ulisses Capozzoli, jornalista
Não sou religioso. Ao menos em sentido mais estrito. De levar ao pé da letra o que é metáfora e pura alegoria. O mundo é impossível de ser traduzido em linguagem literal, ainda que muitos levem a sério essa possibilidade. Em última instância não existe uma literalidade, mas um processo, um fluir, a passagem de um volume d’agua que, ao contrário do que apregoa certa sabedoria popular, pode mover moinhos mais de uma vez.
A água que subiu do café fumegante, a que se acumula para formar os oceanos, a porção que compôs o sangue que correu no corpo de Dante, Aristóteles ou Shakespeare, além de Isaac Newton. Do xixi do cachorro que corre na praça, da poça deixada pela chuva da última noite.
A água evaporada pelo sol para recompor a cada dia a cortina de nuvens. As nuvens que formam e se desformam desde que a Terra emergiu de uma esfera de fogo com um certo volume de água. Ao menos de água potencial, a possibilidade de se formar pela junção de hidrogênio e oxigênio.
No segundo caso, usinado pelas estrelas de primeira geração que se espalharam pelo céu quando os humanos, ao menos os humanos terráqueos, eram uma fraca e reduzida possibilidade de vir a serem o que, neste momento são. Mesmo que sejam menos que pensam. Tanto pela contraposição com a vastidão de todas as outras coisas quanto pela impossibilidade de pensarem a própria existência.
Os que são incapazes de se auto conceberem, enquanto ato de reflexão, são de fato reais? Ou não passam de um “sonho de uma noite de verão” como disse aquele poeta inglês? O sonho, no sonho, não é convincentemente real?
A expulsão do Paraíso que seduz incautos da ortodoxia nunca existiu. É uma relato alegórico da fundação da agricultura, há uns doze mil anos, ao final da última glaciação. Quando a Terra se desnudou da roupagem branca do gelo, sob a ação de um sol mais determinado ou por um conjunto de razões ainda controvertidas: uma alteração orbital, uma aceleração da pulsação solar por complexas interações termonucleares da bomba atômica que nos assegura a vida.
Que parcela da humanidade se dá conta de que o Sol é uma usina cósmica de fusão nuclear, literalmente uma bomba de hidrogênio, em escala muito maior que a estocada nos arsenais armamentistas capazes de calcinar a Terra inteira com fogo atômico? O pastor desconhece, o padre ignora. Uma multidão metida nas universidades desconsidera solenemente: “É mesmo? Não se trata de fake news?”
Não, não é fake news propalada pelo gabinete do ódio. E essa é outra realidade. A realidade do real com sua contrapartida de irreal/irrealidade.
A agricultura surgiu pelas mãos das mulheres, um insulto a mais para as mentes mais estreitas sobreviventes de antigas eras geológicas. As mulheres recolheram as sementes de plantas espalhadas pelas vastidões da Natureza e as lançaram ao solo nos primeiros campos de cultura.
E talvez, (nunca saberemos ao certo, tudo que podemos fazer é apenas conjeturar), tenham sido censuradas pelos sacerdotes, por terem ousado contrariar o que seria um plano divino: árvores distantes nos campos, uma das outras, reunidas em campos de cultura. Mais fartas, generosas e seguras, capazes de sustentar um número maior de vidas. Quando a vida ainda era pouca e difícil.
A vida semeada pelas mulheres com os mini oceanos que desenvolvem em seus corpos em que o estágio aquático permanece imutável. Até o nascimento, quando, em minutos, a respiração aquática, assegurada por tubulações como a de mergulhadores, é abruptamente substituída pela atmosférica. A primeira respiração atmosférica estimulada pelo choro de cada um dos humanos que chegam ao mundo.
Não sou religioso. Ao menos no sentido mais estrito. Ortodoxo, com regras punitivas e obediência a uma lógica que nega a inteligência e a necessidade de reflexão. Mas moro em uma rua restrita a um pequeno trecho, ao lado de uma igreja de cúpulas poéticas em que cada manhã de domingo, por uma ampla porta lateral de madeira, flui uma música poderosa de um órgão centenário. Muitas vezes acompanhadas de cânticos religiosos, carregados de mistério como acontece nesta manhã de domingo quando o sol se impôs à chuva dos últimos dias e a sonoridade do órgão e do vozerio humanos não é abafada pela cachoeira gotejante das águas.
Em uma manhã ensolarada em que leio “A arte de escrever” de Schopenhauer e sua capacidade de provocação: “Como podemos supor, um bom cozinheiro pode dar gosto até a uma velha sola de sapato, da mesma maneira, um bom escritor pode tornar interessante mesmo o assunto mais árido”.
A razão de ser daquele poeta inglês referindo-se aos “sonhos de uma noite de verão”, as narrativas de Homero, mais antigas que a Bíblia e as provocações de Schopenhauer, com toda a injustiça com que, lamento, critica a obra de Kant.
O órgão modula sua sonoridade como a brisa no topo das montanhas, entre uma intensificação e ausência temporárias: ondas lentas de vento como se fossem água. Minha consciência flutua liberada de qualquer constrição.
Não sou religioso, mas a música que flui de um templo, por sua refinada delicadeza me equipa com um par de asas. E me dou conta de que posso voar.
Imagem: Os últimos dias de Vênus como estrela da manhã. Tamas Ladanyi/APOD.