O sonho do Sr. professor C

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E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista fala dos sonhos de um certo professor Sr. C.

Sonho que se sonha só é só um sonho que sonha só, mas sonho que se sonha junto é realidade.

(Raul Seixas)

Certa manhã ao despertar de sonhos intranquilos, o senhor professor C…




Com o quê a gente sonha? Não sabemos se os sonhos recentes do senhor C são capazes de lhe garantir um palpite feliz para o jogo do bicho, o que é uma pena, pois isso traria ao relato um certo tom de utilidade pública.

De qualquer maneira, o que o senhor C tem experimentado talvez esteja no escopo do que na linguagem psicanalítica se define como “vestígios do dia”. Uma breve investigação nos leva a uma ponta do iceberg da vida psíquica do nosso protagonista: no mundo da vigília, o senhor C tem se incomodado deveras com o lançamento no sistema das frequências e das notas de seus alunos.

Quando o sistema sai do ar quem sai do sério é o professor, uma vez que há o risco dos dados extrapolarem o domínio das nuvens e sumirem.

Se ele tivesse um terapeuta, a recomendação indireta ou às claras seria sombra e água fresca por pelo menos umas duas semanas para recuperar as energias depois de tanta angústia. Um recesso pode operar milagres?

É algo que deve ser investigado no caso a caso. No do senhor C, a expectativa do recesso já está incorporada ao seu discurso. Ele tem dito para si mesmo: “Vai-te à roça, senhor C!” com certa frequência, demonstrando que não desconhece de todo a origem dessa angústia que o desconcerta.


Seja como for, abaixo estão alguns relatos de recentes sonhos do nosso impaciente. Que nossos leitores tirem suas próprias conclusões.

1.Um portão se abre e ele tenta correr feito um louco em fuga. Como é próprio aos sonhos, corre-se e não se sai do lugar. Até que, sendo alcançado, ele é levado para trás como que arrastado por uma forte correnteza.

Senta-se de volta na cadeira. Na mesa à sua frente, há uma pilha de diários sorrindo enigmaticamente como se dissessem “Preencha-nos se for capaz!”.

2. Um diário azul bate asas e voa. Por mais que ele tente alcança-lo, ele foge. Enquanto luta contra o diário arredio, o senhor C vê os colegas mostrarem orgulhosos os dóceis diários a comer na palma da mão deles.

3. Uma mensagem no grupo dos professores informa que a partir daquele momento em diante só se será possível usar caneta de cor azul. O senhor C respira aliviado: “Eu tenho uma”, ele pensa no meio do sonho. O susto é grande quando se lê a frase seguinte: “É preciso que se escreva no diário da seguinte forma: faltas em azul; presenças em preto; conteúdos em vermelho. Tudo sem espaço, sem fazer bolota, senão…”. O senhor C. sem lembra de um armarinho que abre às sete da matina. É lá onde se pode comprar as canetas e uma borracha que as apague.

4. É impossível conseguir logar no sistema.“em vez de abrir um helpdesk eu deveria abrir uma heineken ”, o senhor C. se diz no meio do sono, mas para sua infelicidade ele não consegue ler as letrinhas miúdas do passo a passo que diminuem à proporção que ele se aproxima da tela do computador.

5. A tela do computador se desfaz na frente dos seus olhos como se ela fosse um castelo de areia. O celular vira uma ampulheta.

6. É impossível lançar notas abaixo de 6,0 para os alunos – inclusive para aqueles que, por qualquer que seja o motivo, não fizeram nada, que pagaram para ver, que simplesmente ignoraram os apelos do professor senhor C.

7. É recebido um informe segundo o qual os professores que porventura não conseguirem fechar suas notas terão seus vistos cancelados, sendo proibido o embarque para o paraíso.

8. Haverá para o escrutínio público faixas nos braços de todos professores que não conseguiram fechar seus diários. O senhor C. se apavora ao se lembrar do número de diários que possui em aberto. Depois ele ri de si mesmo ao lembrar que tem mais diários do que braços.

9. O senhor C é estrangulado por uma enorme fita vermelha que lhe quebra os ossos.

10. Piscam os celulares mais que decoração de árvore natalina, pois estão programados a emitir sinais luminosos sempre que os dados supostamente gravados se perderem ou que os sistemas estejam fora do ar.

11. A despeito de todos os contratempos ocorridos não haverá prorrogação do prazo de entrega, é o que mensagem diz.

12. Haverá a necessidade de preencher corretamente tanto o diário físico quanto o eletrônico, é o que a mensagem diz.

13. Uma filial do Big Brother Corp. (Grande Irmão Corporation) tem prestado muita atenção ao que ele diz e pensa para si mesmo ou para os outros, na vida em vigília ou no mundo dos sonhos, uma vez que ele é considerado potencialmente um sujeito disruptivo ao funcionamento do sistema devido à sua suposta falta de confiança.
E assim a luta contra os diários, sem a qual não há garantia de recesso, continua noite adentro pelas alamedas do sonho.

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