O SUS que não se vê

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Por Jéssica Remédios, compartilhado do site do Geledés

Em setembro de 2020 o Sistema Único de Saúde (SUS) completou 30 anos. A Lei 8080/90, conhecida também como Lei Orgânica da Saúde definiu as diretrizes para funcionamento e organização do SUS que estão em vigor até hoje.

O sistema de saúde público e universal brasileiro serve de exemplo para outros países e sistemas, e têm como princípios doutrinários a universalidade, equidade e integralidade. Seus princípios organizativos, por sua vez, são a participação popular, regionalização e hierarquização, descentralização.

O princípio da equidade traz à tona as iniquidades sociais e econômicas ao reconhecer a desigualdade no acesso, na gestão e produção de serviços de saúde. Este princípio ressalta as diferenças e a importância de priorizar os grupos onde a iniquidade é maior. Entendendo que os princípios dão alicerce e representam os valores do SUS, embora prevista teoricamente a equidade está longe de ser um princípio de fato. Isto porque, no que diz respeito à saúde da população negra, a equidade no SUS passa longe.




Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) 55,4% da população brasileira é negra. Isso quer dizer que 117 milhões de pessoas se identificam como pretas e pardas no país. Segundo o Boletim de Políticas Sociais de 2008 do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), 67% dos usuários do SUS eram negros. Os dados não foram atualizados nos boletins de 2019 e 2020. A pergunta que fica é: onde as pessoas negras estão representadas nos dados das políticas de saúde? Que indicadores sobre a saúde da população negra são gerados e analisados?

Vamos lembrar um pouco da história para entender como chegamos até aqui, afinal como disse Jurema Werneck: nossos passos vêm de longe. E seguindo seus passos, a pesquisadora Jurema, no artigo Racismo institucional e saúde da população negra traça uma linha histórica dos caminhos da saúde da população negra no SUS. Em 1995, após a Marcha Nacional Zumbi dos Palmares, a pauta entrou na agenda da gestão pública.

Diante da grande mobilização foi criado o Grupo de Trabalho Interministerial para a Valorização da População Negra. Já em 1996, este grupo promove a Mesa Redonda sobre Saúde da População Negra e propõe um conjunto de medidas sobre o tema. A saber: inserção do quesito raça/cor na Declaração de Nascidos Vivos e de Óbitos; a criação do Programa de Anemia Falciforme (PAF) e a detecção precoce da doença via triagem neonatal; a reestruturação da atenção à hipertensão arterial e ao diabetes; o fortalecimento e expansão do então Programa de Saúde da Família até as comunidades quilombolas.

No ano de 1998 o Ministério da Saúde publica o documento “A Saúde da População Negra, realizações e perspectivas”, e em 2001, o “Manual de doenças mais importantes, por razões étnicas, na população brasileira afrodescendente”. Infelizmente o manual se limitou às doenças de origem genética comprovada, como doença falciforme, deficiência de glicose, hipertensão arterial, diabetes mellitus e as síndromes hipertensivas na gravidez. Como ficariam as outras doenças comuns à população negra? Não teriam que ser incluídas as doenças associadas aos determinantes sociais? Onde se encaixaria a desnutrição, verminoses, gastroenterites, tuberculose e outras infecções, alcoolismo e outras?

No mesmo ano, 2001, o governo brasileiro participa da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerâncias Correlatas, realizada na África do Sul e convocada pela Organização das Nações Unidas (ONU). A declaração e plano de ação da Conferência foram fundamentais para que fossem construídas propostas voltadas para a saúde da população negra no Brasil. O principal produto foi o documento que trazia as primeiras discussões acerca da Política Nacional de Saúde da População Negra.

Em 2005, o Movimento Negro ganha uma cadeira no Conselho Nacional de Saúde (CNS), depois de 68 anos de existência do grupo. Em 2006, é instituída Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), principal resolutado das articulações do movimento negro no CNS. A PNSIPN ressalta a relação entre racismo e vulnerabilidade em saúde e até hoje a execução da política nos municípios e estados brasileiros é limitada apesar da maioria dos usuários dos SUS serem negros.

Mesmo com toda trajetória brevemente apresentada, ainda hoje a gestão da saúde pública não considera os dados em suas decisões mesmo que os números indiquem desigualdades entre negros e brancos. Para ter indicadores, a gestão pública precisa de dados organizados em sistemas de maneira que os estados e municípios alimentem. Em 1979 foi implantado o Sistema de Informação de Mortalidade (SIM) e em 1990 o Sistema de Informações dos Nascidos Vivos (SINASC). Somente a partir de 1996, diante de uma recomendação da Organização Mundial de Saúde (OMS), os dados foram estratificados por raça/cor. O Sistema Nacional de Agravos Notificáveis (SINAN), regulamentando em 1998, teve o quesito raça/cor incorporado em 2002.

Se o princípio da equidade prioriza os grupos onde a iniquidade é maior, como fazer isso se não há dados estratificados? Em 2005, Chor & Lima destacaram que a partir dos dados dos disponíveis nos sistemas de informação, apesar das limitações, foi possível constatar que os piores indicadores de mortalidade são referentes a pretos e indígenas.

A população negra é a maioria dos usuários do SUS, mas não é a que recebe melhores cuidados e tem mais acesso. A atenção básica é a porta de entrada para os usuários do SUS. Uma gestante deve ser acompanhada numa unidade básica e o recomendado são pelo menos sete consultas de pré-natal, um acompanhamento adequado no pré-natal diminui as complicações ao longo da gestação e no parto. O boletim epidemiológico do Ministério da Saúde de 2020 mostrou que 65% dos óbitos maternos eram mulheres pretas e pardas. Um outro dado que chama atenção no mesmo boletim é que em 92% dos casos os óbitos são evitáveis.

Em 2017, o Ministério da Saúde na Portaria nº 344 informa a obrigatoriedade de preenchimento do quesito raça/cor por profissionais de saúde em todos os formulários do SUS. Nos painéis de monitoramento do Saúde Brasil, por exemplo, disponibilizados no site do Ministério da Saúde, poucos são aqueles que há a variável raça/cor disponível para estratificar e visualizar os dados.

No dia a dia dos serviços de saúde, usar o quesito raça/cor ainda é algo complexo por envolver concepções pessoais, profissionais e institucionais. Se faz necessário que a gestão federal, municipal e estadual qualifique seus gestores. A implantação do quesito raça/cor demanda treinamentos em serviço, elaboração de materiais e envolvimento da sociedade, assim gestores e profissionais da ponta terão a oportunidade de compreender e debater sobre a pauta e evitar posturas discriminatórias.

O Vigitel é um inquérito telefônico realizado desde 2006 em todas as capitais brasileiras e Distrito Federal. Seu objetivo é monitorar a frequência e a distribuição dos principais determinantes das Doenças Crônicas Não Transmissíveis (DCNT). Em 2018 foi publicado o primeiro relatório que descreveu os resultados sobre a população negra e um comparativo entre negros e brancos. Dentre os resultados, cabe ressaltar que o consumo de frutas e hortaliças é abaixo do esperado, há o consumo abusivo de bebidas alcoólicas, a frequência mulheres negras com excesso de peso e obesidade é maior e a autoavaliação do estado de saúde de negros e negras é negativa.

Ao olharmos para os dados da covid 19 no Sivep (Sistema de Informação de Vigilância Epidemiológica da Gripe), dos 142 mil mortos que foram hospitalizados com SRAG (Síndrome Respiratória Aguda Grave) até setembro, 42% eram pessoas negras. Chama atenção que em 30% dos registros do Sivep, o quesito raça/cor está sem preenchimento, a falta de preenchimento do quesito só ratifica nossa inivisibilidade nos indicadores de saúde.

Há um ditado popular que diz que quem não é visto não é lembrado. Seguimos invisibilizados de diversas formas, e nos dados de saúde é só mais um espaço. Se a população negra não é vista como tal, as políticas públicas não são pensadas para ela, e suas subjetividades não serão atendidas. Não somos lembrados em vida, quando os dados de saúde deveriam ser estratificados por raça/cor ou na morte quando a definição do quesito raça/cor da declaração de óbito passa por um profissional de saúde que na maioria das vezes não vê a importância deste dado.

Embora nossos passos venham de muito longe, seguimos caminhando com muito luto e luta. Temos um longo e árduo caminho pela frente. O SUS é um sistema robusto pensado à luz da equidade, mas não é executado sob este olhar. Quem pensa a política pública está longe de quem executa, e mais ainda de quem utiliza. Se nós, pessoas negras, estivéssemos nesses espaços não seríamos invisíveis. Ocupar espaços de gestão de políticas de saúde e liderança é o principal passo para equidade no SUS.

REFERÊNCIAS

Werneck J. Racismo institucional e saúde da população negra. Saúde Soc 2016; 25:535-49

SANTOS, Andreia Beatriz Silva dos; COELHO, Thereza Christina Bahia; ARAUJO, Edna Maria de. Identificação racial e a produção da informação em saúde. Interface (Botucatu), Botucatu , v. 17, n. 45, p. 341-356, June 2013

Miranda, Monique. Classificação de raça, cor e etnia: conceitos, terminologia e métodos utilizados nas ciências da saúde no Brasil, no período: de 2000 à 2009.

Borret RH, Silva MF, Jatobá LR, Vieira RC, Oliveira DOPS. “A sua consulta tem cor?” – Incorporando o debate racial na Medicina de Família e Comunidade – um relato de experiência. Rev Bras Med Fam Comunidade. 2020;15(42):2255. https://doi.org/10.5712/rbmfc15(42)2255

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IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua trimestral – 2020. Rio de Janeiro: IBGE

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância Epidemiológica. Sistema de Informação de Agravos de Notifi cação–Sinan: normas e rotinas / Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde, Departamento de Vigilância Epidemiológica. – Brasília : Editora do Ministério da Saúde, 2006. 80 p. : il.– (Série A. Normas e Manuais Técnicos)

Jaccoud L, Silva J, Soares S, Rosa W. Igualdade racial. In: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ed. Políticas sociais – acompanhamento e análise no 16, 2008. Brasília (DF): Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA); 2008 Nov;(16). No prelo.

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico N° 20. Volume 51. Maio/2020.

Brasil. Ministério da Saúde. Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico: estimativas sobre frequência e distribuição sociodemográfica de fatores de risco e proteção para doenças crônicas para a população negra nas capitais dos 26 estados brasileiros e no Distrito Federal em 2018

Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Análise em Saúde e Vigilância de Doenças não Transmissíveis. Brasília; Ministério da Saúde; 2019. 133 p. tab, graf.

MARINHO, Fátima. A desigualdade racial em saúde: a importância do quesito raça/cor nos sistemas de informação. Nexo Políticas Públicas, 2020. Disponível em: https://pp.nexojornal.com.br/opiniao/2020/A-desigualdade-racial-em-saúde-a-importância-do-quesito-raça/cor-nos-sistemas-de-informação. Acesso em: 29/11/2020.

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