O teatro judicial e o Estado democrático

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Por Luis Henrique Machado, compartilhado da Revista Conjur – 

Em diversos países, no âmbito da literatura jurídica, procura-se definir qual seria o significado do termo “teatro judicial” ou “julgamento encenado”. Bem difundido no Direito Comparado, o conceito é denominado pelos ingleses de show trial, os franceses o designam de parodie de procès, os alemães o conhecem por Schauprozess, os espanhóis o chamam de farsa judicial e os italianos, por sua vez, o nomeiam de processo burla, entre outros sinônimos utilizados. De maneira geral, pode-se dizer que se trata de um julgamento em que o veredito é determinado antecipadamente e os direitos de defesa são reduzidos a uma mera formalidade.

O vocábulo é empregado em virtude de julgamentos políticos cujo propósito é a propaganda ideológica ou a razão de Estado, sob a capa de uma aparência de legitimidade judicial, voltada a silenciar oponentes ou dissidentes. Esse tipo de julgamento geralmente assume a forma de um espetáculo judicial de perfil midiatizado, visando a influenciar a opinião pública, o que termina por retirar toda a credibilidade de justiça do processo [1].




Ao longo do tempo e ao redor do mundo, é possível mencionar uma quantidade expressiva de julgamentos que assumiram essa feição. À guisa de exemplo, cite-se o julgamento de Moscou e, em geral, o expurgo stalinista contra o aparato bolchevique, liderados por Andrey Vyshinsky, procurador-geral da ex-URSS, entre 1935 e 1939. Vyshinsky participou de uma das mais rumorosas farsas judiciais utilizando-se amplamente do que a tradição clássica denominou de confessio est regina probationum (“a confissão é a rainha das provas”). Registre-se que, em 1937, com o fim de obter confissões contra os denominados inimigos do povo, o Comitê Central do Partido Comunista deu sinal verde ao NKVD (Comissariado do Povo para Assuntos Internos, órgão responsável por proteger a segurança do Estado soviético). Em seu momento mais tenebroso, foi chefiado por Lavrentiy Beria, autor da célebre frase: “Aponte-me o homem e eu encontrarei o delito” [2].

Sob a roupagem de encenação judicial, sobreleva mencionar ainda os vereditos proferidos pelo juiz Roland Freisler ao comandar o Tribunal Popular (Volksgerichtshof) na Alemanha. Famoso por condenar inúmeros dissidentes à pena de morte, tinha como caraterística um comportamento agressivo, humilhava os acusados em sessões públicas e, em grande parte, suprimia o direito de defesa. Entre os notórios executados, Freisler sentenciou os irmãos Scholl, Adolf Reichwein, além de Ulrich-Wilhelm Graf von Schwerin, acusado pelo complô que tinha como objetivo assassinar Adolf Hitler em 1944.

Por fim e digno de nota, destaca-se o “processo de Verona”, realizado em 1944, na Itália.  Levado a cabo por um tribunal ad hoc, instituído por decreto de Benito Mussolini, nele foi condenada à pena de morte parte dos membros do Grande Conselho Fascista que havia votado pela destituição do então ditador. O processo, conhecido por já se saber de antemão qual seria o seu desfecho, é um verdadeiro caso de julgamento forjado, pautado, sobretudo, por acusações infundadas. O caráter de retaliação política era tão perceptível que até mesmo o Ministro da Justiça de Mussolini, Piero Pisenti, resistiu tanto à ideia de concessão de efeitos retroativos no processo quanto sobre o próprio mérito, argumentando que as circunstâncias necessárias para a definição do crime de alta traição não encontravam evidências nos autos.

É claro que os julgamentos acima mencionados ocorreram sob a égide de regimes ditatoriais cujos procedimentos não disfarçavam em apresentar tal identidade. Não obstante, seria inverídico afirmar que os termos “teatro judicial” e “julgamento encenado” não possam intercorrer no âmbito de um Estado democrático, mormente por razões ideológicas e/ou de disputa de poder. Isso implica dizer que a partir do momento em que a higidez das regras do devido processo legal é colocada em xeque, sem que as instituições competentes reajam ou reparem os equívocos cometidos, dá-se ensejo a um julgamento de fachada. Sublinhe-se que os processos eivados de “ilegalidade” somente não são declarados nulos em regimes totalitários, até porque a arbitrariedade é a regra. Em suma, atos autoritários transvestidos de legalidade ou o simples fato de as autoridades judiciais ou de persecução confiarem que os seus atos são insuscetíveis de investigação, sem a possibilidade real de punição, propiciam um terreno fértil ao abuso de poder.

Portanto, perseguições de qualquer natureza por parte de um dado órgão de investigação devem ser analisadas com sensibilidade pelos magistrados em todos os graus de jurisdição. A caçada judicial buscando a condenação a qualquer preço ao arrepio das leis e da Constituição, priorizando o “Direito Penal do autor” em detrimento do “Direito Penal do fato”, deve ser abominado. Nesse sentido, importante sempre ter em mente a mensagem do ex-procurador-geral dos Estados Unidos e, mais tarde, juiz da Suprema Corte Robert Jackson, quando advertiu, em 1940, que o maior perigo do poder do promotor é que “ele vai escolher as pessoas que ele pensa que deveria pegar, em vez de escolher os casos que precisam ser processados. Com os estatutos jurídicos preenchidos com uma grande variedade de crimes, um promotor tem uma chance clara de encontrar pelo menos uma violação técnica de algum ato por parte de quase qualquer um. Nesse caso, não se trata de descobrir o cometimento de um crime e, em seguida, procurar o homem que o cometeu, é uma questão de escolher o homem e, em seguida, procurar nos estatutos jurídicos, ou colocar os investigadores para trabalhar, com a finalidade de imputar algum crime sobre ele” [3].

Logo, a elaboração de power points com o fim de publicizar as próprias convicções, achincalhando o acusado, os vazamentos midiáticos visando à condenação social do investigado e o emparedamento das instâncias superiores, as prisões preventivas apócrifas, decretadas com o nítido caráter de se extrair delações (o que remete a um sistema medieval!), promotores e juízes trabalhando em consórcio e em unidade de propósitos quebrando a imparcialidade necessária, bem como as campanhas em redes sociais realizadas por agentes de persecução contra candidatos ou membros de outros poderes buscando interferir no processo eletivo, não encontram qualquer amparo em um Estado democrático de Direito. Posto isso, remediar a tirania das supostas boas intenções, em nome da justiça, seja talvez o grande desafio do Poder Judiciário nos tempos de hoje, pois somente assim pode-se ter a confiança em um sistema de Justiça penal probo e que goze, sobretudo, de credibilidade.

[1] Veja em Werz, Katharina: Der Schauprozess im 20. Jahrhundert in Deutschland: Begriff, Funktion und Struktur anhand ausgewählter Beispiele. Berliner Juristische Universitätsschriften: Grundlagen des Rechts) (Deutsch) Taschenbuch — 12. Januar 2016.

[2] Quoteikon, Lavrentiy Beria Quotes. Disponível em: https://www.quoteikon.com/lavrentiy-beria-quotes.html (Acesso em 12/2/2021).

[3] Roberts, Paul Craig; Stratton, Lawrence M.: The Tyranny of good intentions — How Prosecutors and Law Enforcement are trampling the Constitution in the Name of Justice, Three Rivers Press, New York, 2008, página 15.

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