Por Ulisses Capozzoli, jornalista, no Facebook
Em julho de 1968 éramos um grupo de garotos e garotas dançando de rosto colado no embalo de músicas tão estranhas como “A Whiter Shade of Pale”, da banda britânica Procol Harum. Às vezes parece que isso aconteceu há uns poucos meses, mas foram 50 anos.
Você pode pensar que é saudosismo. Conversa de um cara que está ficando velho e quer o passado de volta, como quem espera o troco no caixa da padaria. Não, claro que não. Paguei com um cartão de crédito e não espero troco algum. Na verdade, estou falando de coisas que foram reais. Sólidas como um tijolo, que o fluxo do tempo desmaterializou para deixar fragmentos: pedaços desconectados de matéria/memória.
Mas fecho os olhos e ainda ouço a letra estranha da música que dançávamos. A letra não interessava. Se era estranha ou não. O que sei, agora, é que aquela garota de doces olhos azulados não está mais aqui. Uma manhã, ela pegou uma trilha que levava a um poço escuro, de onde não retornou.
Uma tarde pensei ter observado um flash dela na multidão. Meu coração disparou como uma bomba desregulada, pulsando pura adrenalina. Corri, mas não a encontrei. Foi quando compreendi a frase estranha daquela canção: “o rosto dela, a princípio apenas fantasmagórico, transformou se em um tom mais claro de palidez”. Ela já estava do outro lado do rio que, por alguma razão, não pude atravessar.
E eu teria dado tudo por isso. Um dia vou conseguir. Na margem oposta, vou perguntar ao primeiro que encontrar, se ele viu aquela garota de olhos azulados em algum ponto, do outro lado do rio. Ela não pode ter desaparecido, como uma bolha de sabão que fez PLUFT! em algum momento do tempo. Na base da matéria, no exótico reino da mecânica quântica, o tempo é um caranguejo confuso, que anda para frente e para trás.
O tempo não existe nessa dimensão. Apenas quando as coisas todas chegam a certo nível de complexidade o tempo emerge, sem que se saiba a razão de isso ser exatamente assim. Em 1968 a guerra do Vietnam havia chegado ao ápice e falávamos sobre isso em alguns momentos. A garota de olhos azulados e o nosso grupo que lia Sartre, debatia o binômio de Newton e fazia incursões no livre arbítrio até a madrugada.
Fazíamos isso sob um céu carregado de estrelas. Às vezes, uma delas marcava a noite, com o brilho de fósforo riscado, interrompendo por um par de segundo nossas reflexões. Um cigarro distante, aceso por uma estrela: na verdade, um grão de estrela, uma porção mínima de matéria, em cuja intimidade, ainda hoje, o tempo não existe.
O tempo, nessa dimensão, é um caranguejo confuso. Em janeiro de 1968, o Exército Popular do Vietnam e da Frente Nacional de Libertação do Vietnam romperam uma trégua proposta pelo Papa e atacaram em todas as direções. O conflito no Vietnam havia começado muito antes, com uma ocupação pela França.
Líamos Jean Paul Sartre durante o dia e, à noite, sob as estrelas, na pracinha principal, desconfiávamos, sem muita convicção, do “Liberté, egalité et fraternité”. Só palavras, em “As palavras”, do velho Sartre. A garota de olhos azuis às vezes abria seu sorriso de Mona Lisa. Ela sabia de tudo, porque já havia decidido que pegaria a trilha do poço escuro? Ou tinha dúvidas sobre o poço, o destino da guerra e o paradoxo de o tempo não se manifestar na base do mundo. Ainda que fluísse para nós, na pracinha sob o céu carregado de estrelas.
A pracinha está lá. Não é a mesma, ainda que possa parecer. Uma noite, recentemente, sentei-me num daqueles bancos ondulados. E enquanto estive ali, fui o último daquele grupo que cultivava a reflexão sobre tudo que poderia ser pensado. O que cabia em nosso tempo adolescente. Além da garota de olhos azuis, algumas meninas do nosso grupo também atravessaram o rio. Um incompreensível grupo de garotas. Até hoje, nenhum dos garotos fez isso…