Não dá pra conciliar quando o fascismo ainda está à espreita. O terceiro Lula está empenhado em combater o capitalismo especulativo e rentista
Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, compartilhado de Jornalistas Livres
No primeiro volume da biografia de Lula, o jornalista Fernando Morais se afastou da narrativa biográfica clássica e optou por inverter a linha do tempo e contar a história do personagem a contrapelo. O texto não começa em 1978, nas greves do ABC. O ponto de partida é o dia 5 de abril de 2018, quando Sérgio Moro decretou a prisão de Lula. Penso que o biógrafo fez ótima escolha.
Como a história escrita precisa acompanhar a história vivida, nem mesmo Morais sabe quantos volumes ainda serão necessários para concluir o projeto. Afinal, Lula é o atual presidente da República. Acabou de iniciar o terceiro mandato. Existe a possibilidade real de tentar a reeleição em 2026. Alguém duvida que isso possa acontecer?
Seja como for, em algum momento, em algum dos futuros volumes, o biógrafo abordará os primeiros meses do terceiro mandato presidencial de Lula. Nessas páginas, o leitor encontrará um Lula muito diferente daquele que governou o Brasil entre 2003 e 2010.
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Bem distante do signatário da “Carta aos brasileiros” e do presidente que conciliou com o mercado financeiro, o terceiro Lula está empenhado em combater o capitalismo especulativo e rentista. Para o desespero dos agentes econômicos que apoiaram a candidatura de 2022 na expectativa de reencontrar o mesmo Lula de 2003.
Em 2003, foi o então vice-presidente José Alencar que abriu fogo contra a política de juros do Banco Central. Enquanto isso, Lula era discreto no tema e publicamente fortalecia Henrique Meirelles, banqueiro que na época comandava o BC.
Os dois primeiros governos Lula foram o paraíso dos bancos, que atingiram índices de lucratividade até então inéditos. Naqueles tempos, Lula se tornou o melhor gestor da história do capitalismo periférico brasileiro, o que provocou seu divórcio com parte considerável da esquerda.
Hoje, a situação é completamente diferente. Sempre que tem a oportunidade, Lula critica o Banco Central, confronta os “faria limers” e o “mercado”. Defende publicamente que a Petrobrás não pode se limitar à distribuição de dividendos aos seus acionistas, que deve ser uma empresa estratégica para a soberania nacional.
O presidente até poderia terceirizar o papel do policial malvado para lideranças aliadas, como a deputada Gleise Hoffman, por exemplo. Porém, Lula escolheu se apresentar como o crítico do mercado financeiro e do rentismo.
Qual é o cálculo? A resposta passa, obviamente, por Jair Bolsonaro.
O Lula que venceu as eleições de 2022 encarnou a resistência do sistema democrático contra o golpismo bolsonarista. O terceiro Lula não é o sindicalista. Não é o presidente conciliador que, nas palavras de Marcelo Odebrecht, melhorou a vida dos pobres sem prejudicar os ricos.
O terceiro Lula é a resistência da ordem democrática, é o sistema republicano tal como foi implementado pela Constituição de 1988.
Mas o que isso significa?
Antes de tudo, é preciso que fique claro que “democracia” não é apenas um conceito, não é apenas uma abstração. Precisa ser uma experiência concreta de felicidade coletiva. E Lula sabe
perfeitamente disso.
Democracia é encher o carrinho do supermercado. É comer carne pelo menos três vezes por semana. É comprar aparelho de TV novo. É ter casa com dois quartos: um para as crianças e outro para o casal. É comprar roupa nova no final do ano e no aniversário. É a pizza no shopping na tarde de domingo. É viajar de avião.
Tudo isso faz parte de um gesto político e democrático, de participação no gozo da riqueza social. Na democracia todo mundo tem que gozar, pelo menos um pouquinho. Por isso, a picanha foi o grande símbolo da propaganda eleitoral de 2022.
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Por muitos anos, Lula foi criticado pela esquerda por ter despolitizado os mais pobres através da estratégia de ampliação do consumo. Penso completamente diferente: a cidadania começa pelo consumo. Quem não come e veste bem, não tem acesso à cultura e ao lazer, não vive a plenitude da democracia.
Parte do fortalecimento de Bolsonaro se deve à tristeza e frustração provocadas pela drástica restrição nas oportunidades de consumo a partir do início de 2014. Na esteira do lava-jatismo, Bolsonaro conseguiu se apropriar desses sentimentos ao pintar Lula e o PT como os responsáveis pela perda da capacidade de consumo.
O antipetismo que atingiu o apogeu entre 2016 e 2018 foi alimentado, justamente, pela frustração da expectativas criadas pelo próprio reformismo petista.
Nesse sentido, derrotar Bolsonaro exige muito mais do que a vitória matemática nas urnas. É preciso convencer as pessoas de que é melhor viver na democracia, de que elas são mais felizes vivendo na democracia.
E isso tudo precisa acontecer rápido. Não dá pra esperar organizar a casa para o choque de bem-estar social ser sentido apenas na metade final do governo. Tem que ser agora. A democracia tem pressa.
Para isolar o bolsonarismo ao grupo dos fanáticos ideologizados, é necessário que as pessoas sintam, desde já, as delícias da democracia. Obviamente, precisa de orçamento, investimento, crédito. Cabe ao Estado usar o tesouro nacional pra induzir a circulação da riqueza, e isso é incompatível com o modelo de gestão do dinheiro publico preconizado pelo mercado financeiro.
É a percepção da urgência democrática a matéria prima que constitui o terceiro Lula. Não dá pra conciliar quando o fascismo ainda está à espreita.