ONG paulista cria aplicativo para aproximar catadores dos interessados em descartar materiais recicláveis
Por Florência Costa, compartilhado de Projeto Colabora
Há quem os chamem de super-heróis com o pior dos poderes: o da invisibilidade. São os catadores de materiais recicláveis. Eles arrastam até 500 kg nas suas carroças e são responsáveis por quase toda a reciclagem feita no Brasil, mas não são notados pelos pedestres. Os motoristas até que os percebem, mas muitos os amaldiçoam. Há seis anos, a ONG Pimp My Carroça, criada em São Paulo pelo grafiteiro Mundano, procura torná-los visíveis e respeitados. Tudo começou com artistas pintando suas carroças, transformando-as em objetos de arte. Até que o movimento teve, recentemente, uma grande ideia: criar um aplicativo que conectasse os catadores às pessoas e empresas que querem se livrar de materiais recicláveis.
A beleza do Cataki é que consegue atravessar bolhas sociais. Pessoas de classes sociais diferentes se encontrem, conversem e estabelecem relações. Isso ajuda a diminuir o preconceito
Assim nasceu o Cataki, apelidado de “o Tinder da Reciclagem”. Antes mesmo de completar um ano, o Cataki já foi premiado: arrebatou o Grand Prix de Inovação 2018 do Netexplo, em uma cerimônia realizada na Unesco, em Paris, em fevereiro. O prêmio beneficia projetos de tecnologia com maior impacto social.
O Cataki concorreu com outros dois mil projetos. “A beleza do Cataki é que consegue atravessar bolhas sociais. Pessoas de classes sociais diferentes se encontrem, conversem e estabelecem relações. Isso ajuda a diminuir o preconceito”, diz Breno Castro Alves, gerente de produtos e projetos da Pimp My Carroça.
Segundo ele, há 800 mil catadores no Brasil (inclusive os que catam no lixo). São 20 mil em São Paulo. O Cataki, que custou R$ 160 mil, funciona em 65 cidades e envolve 400 catadores. O carroceiro cadastra as suas informações pessoais, foto, telefone, e detalhe os materiais de interesse para coleta, além dos bairros que frequenta. O aplicativo possibilita que uma empresa ou pessoa física que precise do serviço possa escolher através de um mapa o catador mais próximo. “O catador só precisa ter um celular, não precisa de smartphone porque as pessoas ligam para ele”, explicou.
“Os catadores coletam mais de 90% do que o Brasil recicla. Eles são fundamentais, mas recebem muito pouco”, afirmou Breno. “Fizemos um cálculo do impacto ambiental do trabalho deles. Após 30 anos de trabalho, um catador é responsável por evitar o corte de 100 mil árvores. Quantas pessoas podem dizer o mesmo? “, observou.
São gerados diariamente no Brasil cerca de 160 mil toneladas de resíduos sólidos urbanos e 40% desse total poderia ser reciclado, de acordo com a pesquisa “A Organização Coletiva de Catadores de Material Reciclável no Brasil”, publicada pelo IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada). No entanto, apenas 13% destes resíduos urbanos são levados para a reciclagem.
O compromisso da ONG com os catadores é total e a sua criatividade nas ações também. Quando a Pimp My Carroça alugou uma casa para ser sua sede no bairro de Pinheiros, teve que trocar os tacos do chão. “Não vimos os tacos como lixo, mas como matéria-prima. A gente deu os tacos para os melhores artistas de rua do país, que criaram carrocinhas, vendidas ali mesmo na sede ou online. A gente criou um acervo de mais de R$ 100 mil com as mini carroças e 25% das arrecadações do Pimp vêm da venda dessas miniaturas”, contou Breno.
O grande desafio é aumentar a renda dos catadores, diz ele. O preço dos materiais é muito barato. Os catadores conseguem vender um quilo de vidro, por exemplo, por no máximo 15 centavos. O quilo do papel e do plástico fica em torno de 20 a 30 centavos. Já o alumínio custa bem mais (R$ 4 por quilo) e por isso as latinhas têm uma taxa de reciclagem altíssima: 98%. Quanto mais as pessoas fizerem a triagem de papel, plástico, metal, mais valor esses materiais terão para os catadores.
Nos últimos anos os catadores têm se organizado, mas ainda há muito chão pela frente: só 7% deles estão em cooperativas. Registros dos catadores datam do século 19 no Brasil. Essa atividade acompanhou todo o processo de urbanização e por isso é retratada em obras culturais há muitos anos. O poema “O Bicho” (1947), de Manuel Bandeira, e a peça de “Homens de Papel” (1968), de Plínio Marcos, são alguns dos exemplos, assim como o premiado documentário “Lixo Extraordinário”, de 2011, que mostra o trabalho do artista Vik Muniz com catadores do aterro no Jardim Gramacho (atualmente fechado), em Duque de Caxias, no Rio.
Rodrigo de Souza Lucena, 32 anos, é dos poucos catadores que conseguiu sair da invisibilidade. É conhecido no entorno da Avenida Paulista porque sempre deixa ali o seu carreto chamativo, pintado com grafites do Pimp My Carroça e equipado com três TVs. Lucena, que cata papelão e ferro, diz que consegue receber até R$ 4 mil nos meses de bom movimento, muito mais do que a maioria dos outros catadores, muitos dos quais se esforçam para conseguir ganhar R$ 1 mil por mês. Ele mantém as TVs ligadas por meio de um sistema de conexão elétrica clandestino, o chamado gato.
Fanático por esportes – seu sonho era ser jogador de futebol – Lucena sempre sintoniza em jogos brasileiros ou do campeonato europeu. Nascido no Rio Grande do Norte, Lucena – que nunca aprendeu a ler – fugiu de casa quando criança e acabou vindo para São Paulo de carona. Sempre morou na rua e para sobreviver acabou virando catador. Lucena participou deste o início das atividades do Pimp My Carroça e teve o seu carreto decorado: “A carroça bonita, pintada, valoriza mais a gente, chama mais a atenção. Eu até sou parado para posar pra fotos”.