Por Renata Moura de BBC News Brasil em Londres –
Uma casa de paredes brancas na periferia de Palmas, Tocantins, guardou os últimos anos de vida, a dor e a morte de Sandra. A mulher de 39 anos que aos olhos da rua “era alegre e sorria”, foi assassinada dentro do próprio quarto, a facadas, golpeada pelo ex-marido.
Em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, Fabiane deixou rastros do martírio que sofreu espalhados pela casa. Aos 28 anos, teve o “rosto destruído”, os cabelos arrancados e o restante do corpo brutalmente torturado pelo companheiro. Horas depois, morreu no hospital – onde já havia dado entrada cinco vezes desde 2016, agredida.
Cristiane, de 27 anos, também não teve chance. Tombou diante de um homem com uma arma de fogo.
Ela foi executada com um tiro de fuzil no rosto, na cama, segurando o bebê de 1 ano no colo. Segundo a Polícia, relatos apontam que o autor do disparo era seu namorado. O crime ocorreu na zona Norte do Rio de Janeiro, na comunidade do Jacarezinho.
Sandra, Fabiane e Cristiane, a moradora do Jacarezinho, foram vítimas de feminicídio, um homicídio enquadrado por lei no Brasil quando a vítima é mulher e envolve “violência doméstica e familiar” e ou “menosprezo ou discriminação” por ser do sexo feminino.
Gravações contra a violência
Na mesma cidade, em um condomínio de luxo carioca, outra Cristiane relata que escapou com vida de cenas que define como as de um “filme de terror”, com “marcas na pele e na alma”. Ela é atriz, tem 35 anos e atuou em novelas na Globo e na Record. Na vida real, desde março protagoniza um drama na casa onde afirma que já levou empurrões, tapas na cara e ouviu gritos de “eu vou te matar” do marido. Após ter um fio de telefone enrolado ao pescoço, ela achou que seria estrangulada. Para justificar a acusação, Cristiane apresentou imagens gravadas com câmeras de segurança que instalou em segredo em sua própria casa.
Os reveses na relação do casal vieram a público pela primeira vez em 18 de novembro, em entrevista de Cristiane ao programa Fantástico, da TV Globo. O programa exibiu vídeos, fotos e áudios de brigas, lesões, ameaças e pedidos de socorro que ecoaram dentro da casa.
O marido de Cristiane, o empresário e ex-diplomata Sergio Schiller Thompson-Flores, foi preso neste domingo após se apresentar à 28ª Delegacia de Polícia do Rio. Segundo a delegada titular da Delegacia da Mulher do Rio Centro, Débora Rodrigues, havia um mandado de prisão pendente contra ele, expedido em 31 de outubro por descumprimento de medidas protetivas que determinavam que se afastasse do lar. Antes de ser preso, Sergio já havia sido indiciado por tentativa de feminicídio.
Tais medidas foram determinadas após agressões que a atriz relatou em depoimento à Justiça e reafirmou em entrevista à BBC News Brasil – e teriam ocorrido no dia 31 de agosto. “Não sei como, mas sobrevivi”, disse Cristiane sobre esse dia.
Feminicídios e violência
No mundo, 137 mulheres são assassinadas todos os dias por parceiros ou membros da família.
Os dados são do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), foram divulgados pela BBC News neste domingo e mostram que “o lar é o lugar mais provável para a mulher ser morta”.
- Simone Cousteau, a exploradora que largou o conforto de Paris para investigar o fundo do mar
- Fanny Mendelssohn, compositora clássica que teve as obras lançadas como se fossem do irmão
No Brasil, m 2016, foram registradas 4.606 mortes violentas de mulheres – o que representa 1 mulher assassinada a cada 2 horas no Brasil. Faltam, no entanto, estatísticas nacionais sobre o risco da violência em casa, mas, em 2013, a pesquisa Violência e Assassinatos de Mulheres (Data Popular/Instituto Patrícia Galvão) revelou significativa preocupação com a violência doméstica: para 70% da população, a mulher sofre mais violência dentro de casa do que em espaços públicos no Brasil.
Os dados dessa pesquisa revelam ainda que o problema está presente no cotidiano da maior parte dos brasileiros: entre os entrevistados de ambos os sexos e de todas as classes sociais, 54% conhecem uma mulher que já foi agredida por um parceiro e 56% conhecem um homem que já agrediu uma parceira.
Além disso, um estudo do Ministério Público de São Paulo publicado neste ano também mostra, com base na análise de casos em 121 comarcas do Estado, a casa como o local onde ocorrem 66% dos feminicídios.
100 Mulheres
Para conhecer mais sobre a realidade mulheres por trás dos números, o BBC 100 Women, série de reportagens que enfoca o papel das mulheres no século 21, e o BBC Monitoring, divisão que acompanha e analisa notícias da mídia no mundo inteiro, contaram as mortes noticiadas por TVs, emissoras de rádio, jornais, sites e redes sociais globalmente em 1º de outubro de 2018.
A pesquisa, divulgada no domingo, levou ao mapeamento de 47 assassinatos nesse único dia, entre eles o de Sandra e outros sete no Brasil – o maior número entre 21 países onde foram identificados.
O México aparece em segundo lugar, seguido por Colômbia, Índia, Indonésia, Paquistão e Reino Unido, empatados em terceiro.
Se considerado o mês completo, a BBC News Brasil encontrou no Brasil 24 casos de assassinatos dentro de casa, a partir de pesquisa em relatos em portais de notícias. Outros quatro aparecem nos primeiros seis dias de novembro. Levantamento da BBC News Brasil a partir de reportagens publicadas em portais de notícias brasileiros identificou 28 mulheres assassinadas dentro de casa com parceiros ou ex-parceiros que confessaram o crime e foram presos, cometeram suicídio ou são apontados como suspeitos, mas fugiram.
Os casos foram registrados em 13 Estados entre 1º de outubro e 6 de novembro. O número de mortes e o alcance da violência, porém, podem ser bem maiores. Nem todas chegam ao noticiário.
Segundo Israel Andrade, delegado adjunto de homicídios de Palmas – cidade onde Sandra morreu – a casa é o lugar mais provável para uma mulher ser assassinada porque “é onde ela está mais desprotegida e o agressor se sente ‘dono’ do lugar e dono da mulher”.
A seguir, veja três retratos desse calvário e a história de Cristiane, a artista, uma das mais de 5 mil denúncias de tentativa de feminicídio que a Central de Atendimento a Mulher – Ligue 180, do Ministério dos Direitos Humanos do Brasil, recebeu este ano.
Entre as quatro paredes de Sandra
Sandra Lucia Hammer Moura tinha 39 anos quando foi assassinada em Palmas, no Tocantins, em 1º de outubro de 2018. Vinte e três anos antes, a menina que aprendeu “desde nova” a fazer crochê com a mãe havia casado, aos 16, com Augusto Aguiar Ribeiro.
“No início, eles até foram felizes”, conta uma parente dela que prefere não se identificar.
“Mas de uns tempos para cá ele andava muito violento. Bebia e tinha muitos ciúmes”.
As agressões que cometia eram físicas, e, principalmente, psicológicas.
Empurrava, batia com as mãos, “dizia que Sandra não valia nada, e muitas outras coisas”.
Um dia, em uma discussão, Augusto pegou uma faca – de acordo relatos de uma parente – fez um corte superficial no braço e outro na mão dela. “Ela sofria. Sempre chorava. Dizia que não aguentava mais.”
“Tentou se separar várias vezes, mas tinha medo porque ele ameaçava matar.”
E matou.
Cinco meses antes disso, Augusto saiu de casa.
A relação entre eles ficou “amigável” após a separação, contam o delegado Israel Andrade e a parente da vítima.
Augusto almoçava às vezes na casa de Sandra e saía com ela para resolver coisas do dia a dia.
Ele era motorista de caminhão. Ela, ganhava a vida com a venda de tapetes de crochê e diárias de R$ 100 que recebia às terças, quintas e domingos pelo trabalho em uma banca de hortaliças de uma feira livre.
No dia 1º de outubro de 2018, uma segunda-feira, o filho de 18 anos, com quem morava, saiu cedo para trabalhar.
Ela havia combinado de ir com o ex-marido a uma cidade próxima vender os tapetes que confeccionava.
Dentro de casa, porém, os dois brigaram.
Briga e morte
Escoriações identificadas no laudo apontam que Sandra tentou se defender do ex-marido.
Acabou morta por ele no quarto, com duas facadas no pescoço.
Ao lado da cama, estendida, seria encontrada horas mais tarde por uma das irmãs e o filho.
Augusto, após golpear a mulher, saiu da casa, tomou banho, trocou de roupa e pôs um crucifixo no pescoço, descreveu o delegado.
A hipótese da polícia é de que, nesse ínterim, “desapareceu com a faca”.
De volta à cena do crime, gravou vídeos com o celular confessando e “justificando” o que havia feito.
Em seguida, deixou o aparelho carregando no armário da cozinha e cometeu suicídio no quarto onde a mulher estava morta.
O celular continha duas fotos de Sandra assassinada e a confissão que ele fez na sala, sentado no sofá, sem mostrar o rosto.
O homem, na confissão, se diz inconformado com o fim do casamento e com um possível novo relacionamento da mulher.
A familiar de Sandra disse à BBC News Brasil não ter conhecimento de que ela estivesse namorando.
Acha que era como uma suposição de Augusto, “porque era muito ciumento”.
No vídeo, “ele diz que não aceitava a separação, que ela estava envolvida com outro e não queria nada com ele”, conta o delegado. Diz também que ele “não podia aceitar uma coisa dessas, depois de mais de 20 anos cuidando dela. Que homem nenhum aceitaria”.
Entre outras declarações, Augusto avisa que não será preso e que ele e Sandra “vão juntos para a glória de Deus”.
A polícia acredita que ele matou a mulher por volta das 11h e morreu por volta das 16h. Os vizinhos não viram ou ouviram nada.
Quase duas horas depois, desconfiados do sumiço do casal o dia inteiro, o filho e uma irmã de Sandra combinaram ir juntos à casa.
Segundo informações da polícia e da familiar de Sandra, Augusto estava tranquilo nos últimos tempos, e não levantava suspeitas.
Ao se depararem com os corpos, o filho mais novo do casal e uma irmã dela chamaram a polícia. O sentimento da família é de “muita dor”.
O caso de Sandra foi enquadrado como feminicídio e vai ser arquivado, tendo em vista que Augusto, o autor do assassinato, cometeu suicídio, diz o delegado Israel Andrade.
Quem conhecia a mulher diz: “A casa era o lugar que ela mais amava. Ser feliz era o que ela mais queria”.
O terror de Fabiane
Fabiane Desiderio Lopes tinha 28 anos quando foi assassinada em Rio Grande, no Rio Grande do Sul, em 17 de outubro de 2018.
Cerca de dois anos antes, ela caminhava de manhã cedo quando recebeu uma mensagem no celular perguntando: “Quer casar comigo?”
“E ela aceitou. Toda feliz”, diz uma pessoa próxima que, por questão de segurança, não será identificada na reportagem.
Na semana seguinte, Fabiane estava morando com Natanael Nunes Domingues que, aos olhos dos outros, “se apresentava como um homem bom”.
Ela estava no início da gravidez da quinta filha quando se conheceram.
As outras quatro que tinha viviam com a avó materna, em outro compartimento da casa.
Fabiane teria apanhado a primeira vez quando estava grávida de nove meses.
Um parente chamou a polícia, mas quando chegaram ao local, a briga havia terminado.
“Ela abriu a porta e falou que foi só uma discussão de família”.
Meses depois, ao voltar bêbado para casa, Natanael teria se enfurecido com o portão trancado e agrediu a mulher, de novo, quando Fabiane ainda carregava no colo uma criança nascida há poucos dias.
A mãe, a tia e a prima, que tentaram defendê-la, também apanharam. Natan, como é conhecido, teria corrido, e voltado em seguida.
“Chegou chutando a porta e dizendo ‘Cadê a Fabiane? Cadê a Fabiane? Vocês esconderam minha mulher, eu vou matar vocês’.”
“Arrancou o relógio do contador de luz, arrancou o portão da casa. A polícia chegou e levou ele, mas depois foi solto. Teve a audiência da Maria da Penha. E Fabiane foi testemunha a favor dele. Ela sempre voltava para ele. Era um amor doentio”, disse a fonte.
Representante da Santa Casa do Rio Grande, onde a vítima foi declarada morta em 17 de outubro, disse à BBC News Brasil que Fabiane já havia dado entrada cinco vezes no hospital por agressões físicas.
Ela tinha estado na unidade em 7 de fevereiro de 2016, em 26 de agosto do mesmo ano e em 28 de outubro de 2017. Apresentava ferimentos no rosto e precisou levar pontos.
Em 04 de agosto de 2018, apareceu com um ferimento no couro cabeludo. Em 17 de setembro deste ano, foi atendida mais uma vez. Segundo o hospital, “teve um aborto”.
A ficha não diz se o motivo foi agressão física, mas a possibilidade não foi descartada pela equipe. Seria o seu sexto filho.
Natan, de acordo com relatos apurados pela reportagem, acusou Fabiane de traição. “Houve uma briga. No dia seguinte, ele deu umas marteladas nela, que foi parar no hospital”.
‘Apanhar até desmaiar’
As agressões, de acordo com pessoas próximas, já faziam parte da rotina do casal. “Fabiane já estava acostumada a apanhar, apanhar, apanhar, até desmaiar”.
Só que em 17 de outubro de 2018 ela não só desmaiou. Foi morta.
Um sofrimento durante minutos ou horas? Ninguém conseguiu dimensionar.
“Ele levou ela pra casa, ligou o som e começou a bater nela”, contou a fonte. “Eu acho que ele viu que ia matar ela, aí botou num táxi e mandou largar ela no hospital.”
Fabiane já havia prestado queixa duas vezes contra Natanael por lesão e ameaça. Desistiu, no entanto, de ir em frente com o processo e voltou para ele.
A delegada da Mulher em Rio Grande, Ligia Marques Furlanetto, explica que a Lei Maria da Penha permite que a vítima retire a queixa no caso de ameaça, mas não de lesão corporal. O termo de desistência que precisa assinar para isso, na delegacia, antes de aceito é submetido à análise judicial.
Segundo informações do hospital, Fabiane chegou sentada no banco da frente do carro, ao lado do taxista.
O taxista parou na porta do pronto-socorro e, sem descer, pediu ajuda para retirá-la.
“Apavorada” com o que via, uma técnica de enfermagem que saía do plantão socorreu a mulher.
Fabiane foi colocada em uma cadeira de rodas e levada para dentro, vestindo apenas uma camiseta de time de futebol e uma bermuda. O táxi partiu.
“Estava bastante ensanguentada e machucada.”
Como ficou sem acompanhante e documentos, Fabiane foi registrada no hospital como desconhecida.
Tanto a polícia quanto o hospital confirmaram que “ela apresentava inúmeras lesões por todo o corpo, incluindo seios, abdômen e vagina”. Seu rosto foi “destruído”, “desfigurado”.
De acordo com a Santa Casa do Rio Grande, ela tinha hematomas em volta dos olhos, cortes na boca, perdas de dentes, perfurações na cabeça e estava quase sem cabelos.
Imagens divulgadas pela polícia mostram mechas de cabelo e sangue espalhados pelo chão e sobre a cama na casa para onde havia se mudado com o companheiro meses antes.
Nos braços e nas pernas, vários cortes. A vagina também estava cortada e havia sinais de introdução de algum objeto.
“O estado geral dela era tão ruim que precisou ser reanimada duas vezes. Mas não aguentou mais e foi constatado o óbito”, disse o hospital. O serviço social da unidade foi então acionado e chamou a polícia.
A causa da morte de Fabiane foi traumatismo craniano, disse à BBC News Brasil a delegada Ligia Marques Furlanetto. “O agressor, em depoimento, afirmou que usou um ferro de obra para lesionar a vítima. Ele alegou que não queria matá-la. Eles sempre dizem que não”, observou ela. O relatório final do laudo de necropsia aponta que “houve tortura e meio cruel”.
O provável horário do óbito foi 14h30. Natanael foi preso dentro da casa, no dia seguinte ao crime, e confessou que matou por ciúmes. Segundo a delegada, ele disse ao taxista que a mulher havia caído da escada.
Vizinhos teriam ouvido gritos durante a noite, disse ela. Mas não quiseram dar depoimento. Parentes também não.
“Todos estavam com muito medo”, afirma a delegada, descrevendo o caso como “um dos mais graves de violência doméstica” em que atuou.
Natanel foi indiciado por feminicídio e encaminhado ao presídio de Rio Grande.
O Ministério Público de Rio Grande informou que apresentou denúncia contra ele em 13 de novembro de 2018 “por homicídio quadruplamente qualificado (motivo torpe, emprego de tortura, com recurso que dificultou a defesa da vítima e contra a mulher por razões da condição de sexo feminino – feminicídio)”.
A denúncia é assinada pelo promotor de Justiça Frederico Lang. Natanael continua preso e está à espera de julgamento. A pena de reclusão em casos de feminicídio é de 12 a 30 anos. Ele ainda não tem advogado no processo.
A execução de Cristiane – na comunidade do Jacarezinho
Cristiane Ferreira da Silva tinha 27 anos quando foi assassinada na comunidade do Jacarezinho, no Rio de Janeiro, em 2 de novembro de 2018.
Ela estava em um bar minutos antes e deixou o local por volta da 1h da manhã.
Ao chegar em casa, o homem apontado como suspeito de tê-la matado entrou com ela no sobrado de sala, banheiro, cozinha e quarto em que ela vivia – segundo informações apuradas pela reportagem.
“Ele matou ela na cama, no quarto. A nenenzinha dela de 1 aninho estava no colo dela”, diz um morador.
“Soubemos que ele só falou que ia dar um tiro na cara dela e deu. Não tiveram discussão.”
Essa fonte ouvida pela BBC News Brasil contou que “ele atirou e jogou um travesseiro por cima da cabeça dela”. O homem foi visto correndo na rua em seguida.
Vizinhos ouviram o disparo, mas numa comunidade onde o barulho é descrito como parte da rotina, só souberam do assassinato algum tempo depois.
As pessoas que foram até o quarto e depararam com a mulher morta só puderam “ligar para o rabecão”, o veículo oficial para recolhimento de cadáveres.
O carro não chegou. A explicação que teriam dado é de que não poderiam entrar na favela, por ser área de risco.
O corpo em um carrinho de mão
Cristiane tinha quatro filhos e era descrita como uma moça “feliz”, que gostava de festas, de trabalhar e, muito, das crianças.
“Ela vivia praticamente para os filhos. Criava eles com a ajuda da mãe”, contou um morador.
No meio da madrugada em que foi assassinada, o corpo da moça de cabelos cacheados que aparece sempre sorrindo nas fotos “foi colocado em uma carroça parecida com um carrinho de mão usado para catar coisas na rua”.
O carrinho, a única alternativa que parentes e vizinhos tinham, foi usado para transportá-la até a UPA, a Unidade de Pronto Atendimento de Manguinhos.
Meia hora de caminhada depois, o cortejo que a carregava “em desespero” pelas ruas finalmente entrou na unidade, “aos gritos”.
“Não tinham esperança de ela estar viva. Mas era pedindo ajuda, para alguém dar um jeito, fazer alguma coisa”, conta um morador. “O sentimento era de tristeza, de revolta”.
A UPA de Manguinhos informou à reportagem que Cristiane deu entrada na unidade às 5h30 da manhã.
Houve uma tentativa de reanimá-la. Mas às 5h45 foi declarada morta. Ela foi enterrada no dia 3 de novembro.
Investigação e namorado sob suspeita
Dois dias antes de ser assassinada dentro de casa, ela compartilhou um post no Facebook em que se lia: “Quem nunca foi ameaçada de morte pelo boy não sabe o que é bater de frente com ele pra ver se ele vai te matar mesmo kkkk”.
Procurada pela reportagem, a Delegacia de Homicídios do Rio de Janeiro não confirmou se ela vinha sendo ameaçada nem se a postagem é usada como prova na investigação.
Disse, no entanto, que “relatos apontam como autor o namorado da vítima” e que “agentes estão realizando diligências para elucidar o caso”. A delegacia foi questionada, mas não respondeu se o suspeito está sendo procurado, se já foi interrogado ou se é considerado foragido.
A investigação, limitou-se a dizer, está em andamento. “Não há novidades para a imprensa”, escreveu, em nota enviada por e-mail à BBC.
O delegado responsável pelo caso não quis comentar.
Cristiane era a mais velha de três irmãos; seu último trabalho foi como balconista em uma cantina de hospital mas, depois que teve a filha mais nova, ficou desempregada.
Pessoas da comunidade dizem acreditar que ela foi morta “porque tinha mandado o homem embora e ele não aceitou”. “Não teve nem três meses de namoro. Ele não aceitava o fim”, diz um morador.
A mulher também já teria relatado a conhecidos ter sofrido agressões, mas não teria procurado a polícia.
A UPA de Manguinhos afirmou que ela foi morta com um tiro de fuzil perto do olho.
Moradores dizem que, ao desaparecer, o suspeito teria levado a arma.
Cristiane foi velada com o caixão fechado.
A família colou uma foto dela sobre o caixão.
Foi a última imagem dela que parentes e amigos viram, antes de enterrá-la.
“A brutalidade foi tão grande que a gente não consegue sair do pesadelo”, disse um parente. “Espero que a Justiça seja feita e que ela não caia no esquecimento.”
O drama de incontáveis mulheres
Um problema nacional
Para a doutora em sociologia, consultora do Escritório ONU Mulheres Brasil e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp e do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Wânia Pasinato, “o enfrentamento à violência contra mulheres no país é seletivo”.
“As pessoas que aplicam as leis, a sociedade em geral, a mídia, estão mais sensíveis quando são mulheres brancas, de classe média ou alta, do que com as mortes que envolvem mulheres jovens, negras, pobres, residentes em periferias ou lugares pobres no Brasil afora. Aliás, essas são a maioria das mortes”, analisa.
Feminicídios, segundo a especialista, são “um problema nacional”, com um total de vítimas incontável. “Quantas morrem por questões de gênero não sabemos. Quantas morrem pelas mãos de parceiros afetivos não sabemos”, diz Wânia.
Toda e qualquer estatística que se pretenda nacional e afirme esses números, segundo ela, é parcial e, portanto, não é um retrato confiável da realidade. “Serve apenas para causar ‘barulho’ na mídia, mas não ajuda a enfrentar o problema porque não sensibiliza autoridades responsáveis pelas políticas públicas no país”, observa ainda.
Fugindo de agressões em um condomínio de luxo
A atriz Cristiane Machado conta que tinha 34 anos quando apanhou do marido pela primeira vez. Era a madrugada de 5 de março, em 2018, no Rio de Janeiro, dentro da casa de quatro quartos em que moravam em um condomínio de luxo. “Eu abri um processo, nós tivemos audiência em 8 de agosto, mas ainda não saiu a sentença”, diz ela.
Menos de um mês depois, em 31 de agosto, imagens captaram o marido envolvendo o pescoço da atriz com o fio de um carregador de celular. Eles estavam na suíte com closet onde dormiam, instalada no terceiro andar.
Débora Rodrigues, da Delegacia da Mulher do Centro do Rio, vê tentativa de feminicídio. “No meu entendimento ele tentou tirar a vida dela ali”.
O casal começou a namorar em março de 2017. Em agosto do mesmo ano Sergio pediu a atriz em casamento. A união civil foi realizada em 7 de novembro. A atriz conta que o marido era como “um príncipe encantado”, e o relacionamento como uma “novela de amor”. Eles se casaram no religioso no dia 28 de abril. Entre uma briga e outra, se reconciliavam.
“Ele mandava mensagens de amor, se ajoelhou, disse que íamos ser felizes”, contou Cristiane sobre uma das “voltas” deles. Hoje, ela afirma que a relação se tornou “um grande filme de terror”.
A agressão, que a atriz também documentou por meio de exame de corpo de delito e boletim de ocorrência, foi seguida por um pedido de medida protetiva à Justiça – opção oferecida a vítimas de violência doméstica que, na prática, impede o agressor, por exemplo, de se aproximar ou fazer contato.
Sergio teve a prisão preventiva decretada em 31 de outubro por descumprimento das medidas. Ele se apresentou à polícia no domingo, à 28ª DP e está em Bangu (presídio do Rio de Janeiro).
No sábado, um dia antes de se apresentar, o advogado Raphael Mattos disse que há um habeas corpus contra o decreto de prisão, considerado “ilegal” pela defesa.
“Mas ainda assim entendemos que sua apresentação (à polícia) será melhor para o esclarecimento dos fatos”, acrescentou.
Mattos, que o representa, disse à BBC News Brasil que ao se apresentar à polícia o empresário “apenas atendeu a uma determinação da Justiça e não há nada para comentar”, e que as decisões judiciais “concluirão pela completa falta de necessidade” desse mandado de prisão. Ele disse que o mandado de prisão é considerado ilegal pela defesa, e que espera o julgamento de um pedido de habeas corpus. A defesa de Sergio afirma que os vídeos, que são muito fortes e gráficos, mostram apenas parte do que aconteceu.
Que revelam uma “reação” dele a uma agressão anterior que Cristiane teria cometido, que houve lesão contra ele e o motivo está “sub judice”. A defesa da atriz disse à BBC News Brasil que o argumento de que houve “ação e reação é uma palhaçada”, já que as imagens que a mostram sendo agredida “falam mais do que qualquer palavra”.
À BBC News Brasil, Cristiane afirma que decidiu tornar o caso público como forma de proteção.
A defesa do marido, porém, contesta a versão e afirma que ela age movida por interesses financeiros, referindo-se a um contrato assinado pelo casal que prevê multas para o caso de haver traição ou agressões comprovadas no casamento.
O montante, em valores atualizados, é estimado em pouco mais de R$ 1,2 milhão.
Como combater a violência doméstica?
A socióloga Wânia Pasinato diz que mudanças no quadro de violência contra a mulher “não vão ocorrer através de leis penais, com punições e encarceramento em massa dos assassinos, mas ocorrerão de forma mais promissora através da educação que ensine a tolerância à diferença, ensine sobre direitos humanos, igualdade entre homens e mulheres”.
“Algumas coisas foram feitas nesse sentido, mas considerando o histórico de formação da sociedade brasileira, seu viés fortemente conservador e religioso, o tamanho da população e as características regionais, tudo é muito pouco”, analisa, ressaltando que “é preciso cobrar das autoridades públicas que implementem as leis já existentes e as políticas públicas que também já existem”, em vez da criação de medidas novas.
“A Lei Maria da Penha é uma diretriz dessas políticas e nunca foi implementada integralmente. Punir apenas, não resolve o problema da violência baseada no gênero.”
Wânia também defende políticas de acesso a trabalho, renda, moradia, saúde, educação e informação, como forma de melhorar a vida e reduzir a dependência de algumas mulheres dos agressores.
A delegada Ligia Furlanetto, de Rio Grande, reforça a necessidade de uma mudança cultural: “A mulher não pode ser considerada culpada pela sociedade”. Ela ressalta que o fato de algumas continuarem com os agressores e muitas vezes desistirem de denunciá-los não tem a ver com “gostar de apanhar ou amor doentio”. E também vai além do medo.
Para a delegada, é preciso romper o silêncio – estimulado inclusive com ditados populares como o que diz que “em briga de marido e mulher ninguém mete a colher” – e dar apoio a essas mulheres.
“É necessário fazer tratamento psicológico para que elas se vejam fortes o suficiente para romper com aquele ciclo de violência, aquela relação conflituosa que muitas vezes não conseguem enxergar, para que possam denunciar e romper”, diz ela.
O rompimento, afirma, às vezes é mais dificil do que a denúncia.
“Muitas acabam voltando para o agressor com a esperança de que um dia ele possa melhorar. Mas isso não vai acontecer.”
A secretária Nacional de Políticas para Mulheres, do Ministério dos Direitos Humanos, Andreza Colatto, disse que o Brasil avançou ao tipificar em lei o assassinato de mulheres, por situação de gênero – aumentando dessa maneira, por exemplo, a pena dos assassinos. “Mas muito ainda precisamos trabalhar.”
Para ela, “políticas de sensibilização da população e fortalecimento dos canais de denúncia tiveram resultados”, mas é preciso ir além. “Agora precisamos trabalhar na qualificação da denúncia, na persecução penal, além do atendimento à vítima e na prevenção da violência, por meio do fortalecimento de valores humanizadores e feministas.”
Cristiane Machado, a atriz, diz que “falta agilidade da justiça para que de fato a mulher se sinta protegida e seja protegida”.
Um parente de Cristiane, a do Jacarezinho, também reclama.
“Saiu reportagem uns dois dias na televisão. Agora, não acontece mais nada. E o homem está solto.”