Como dizia Freud, os escritores costumam antecipar uma vasta gama de coisas sobre a mente, apreendendo o que é fugaz na experiência do inconsciente.
Por Gerson Smiech Pinho (*), compartilhado de Sul 21
na foto: Cena de "The Room Next Door", de Pedro Almodóvar (Divulgação)
Quem tem alguma familiaridade com a obra cinematográfica do diretor Pedro Almodóvar e lê o conto “Mudanças de gênero em demasia”, que integra a coletânea de textos escritos pelo diretor espanhol intitulada “O último sonho”, facilmente evoca elementos de seus filmes em determinados trechos da leitura.
Em uma passagem desse conto, por exemplo, um ator e um diretor preparam o roteiro de um filme a partir da peça “A voz humana”, de Jean Cocteau, na qual uma única personagem em cena fala ao telefone com o amante que a abandonou. A intenção deles é adaptar o texto de Cocteau, fazendo com que o protagonista seja um homem e incluindo na narrativa do filme os dois dias que antecederam o telefonema.
Na versão proposta por eles, como o protagonista não aguentava mais morar na casa que o fazia lembrar de seu amor ausente e na qual por um milagre não ateou fogo, colocou a residência para alugar enquanto esperava o ex-amante com as malas feitas. Desse modo, ao abrir as portas da sua moradia para locação, ele encontraria diversos outros personagens – o filho do amante que vem com a namorada com a intenção de se alojar na casa, a antiga mulher do amante e, até mesmo, uma colega de trabalho que está fugindo da polícia porque teve um relacionamento com um terrorista.
À exceção de que a protagonista é uma mulher, como na peça de Cocteau, todos os elementos citados neste conto aparecem no filme “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, de 1988, – do homem ausente à amiga que teve um relacionamento com um terrorista, passando pelo quase incêndio da residência. Tal coincidência evidentemente não se dá por acaso, já que o autor do conto citado é também o diretor do filme.
“Mudanças de gênero em demasia” é um dos doze contos que compõem “O último sonho”, livro recém lançado em português pela Companhia das Letras, que reúne escritos de Pedro Almodóvar produzidos em vários períodos de sua vida, desde o final da década de 1960 até 2023. Segundo o próprio autor, esses contos são um complemento a seus trabalhos cinematográficos, já que trazem muitos elementos e referências que dão forma a seus filmes.
“A voz humana”, de Cocteau, por exemplo, não só está na origem de “Mulheres à beira de um ataque de nervos”, mas também aparece encenada em “A lei do desejo”, obra cinematográfica de 1987. Além disso, transformou-se no primeiro curta-metragem em língua inglesa produzido por Almodóvar, com Tilda Swinton como protagonista, lançado em 2020. Muitos dos escritos reunidos nesta coletânea são compostos pela base do que serão futuros filmes – trazem seu enredo em forma embrionária. Um belo exemplo é “A visita”, texto que abre o conjunto de contos e que contém toda uma sequência de “Má educação”, filme de 2004.
Além das inúmeras referências cinematográficas presentes nesses escritos, a sexualidade, o desejo e a morte são recorrentes nos contos de “O último sonho”, temas centrais também nos filmes do diretor espanhol. Como dizia Freud, os escritores costumam conhecer e antecipar uma vasta gama de coisas acerca do conhecimento da mente, pois se nutrem em fontes não acessíveis à ciência ou à filosofia, conseguindo apreender aquilo que é fugaz na experiência do inconsciente. Essa afirmação é válida tanto para a obra literária quanto cinematográfica de Almodóvar. Como diz o autor no conto “Natal amargo”, “sempre acreditei que o cinema tem algo de premonitório.” (p. 137)
Ainda que o diretor espanhol sempre tenha se recusado a escrever uma autobiografia, este livro não deixa de referir diversas passagens e épocas de sua vida, indicando o laço entre aquilo que vive e aquilo que escreve e filma. Alguns textos retratam abertamente passagens de sua existência, do momento mesmo que as experimentava, sem qualquer distanciamento. É o caso do conto que dá nome ao livro, “O último sonho”, que relata seu primeiro dia de orfandade, após a morte de sua mãe. Almodóvar considera que suas cinco páginas estão entre as melhores coisas que já escreveu. Nesse escrito, conta o modo como sua mãe lhe transmitiu algo para seu trabalho: “a diferença entre a ficção e a realidade, e como a realidade precisa ser completada pela ficção para tornar a vida mais fácil.” (p. 93)
Quando Almodóvar tinha oito anos e sua família morava na província de Badajoz, em uma situação econômica precária, sua mãe encontrou uma forma criativa de complementar a renda doméstica. Começou um negócio de leitura e escrita de cartas para os vizinhos analfabetos, como no filme “Central do Brasil”. Ao prestar atenção no que sua mãe lia, descobriu que não correspondia exatamente ao que estava escrito no papel. Sem que as vizinhas soubessem, ela inventava parte do que lia, deixando suas ouvintes encantadas. Ao ser questionada pelo filho, sua mãe respondeu: “Mas você viu como ela ficou feliz?” (p. 94)
Almodóvar afirma que essas improvisações da mãe foram uma grande lição para ele. Estabeleciam a diferença entre a ficção e a realidade, e mostravam como a realidade necessita da ficção para ser mais completa, agradável e habitável.
Recém contemplado com o Leão de Ouro em Veneza com seu novo filme, “The Room Next Door”, seu primeiro longa-metragem em inglês, o diretor espanhol continua a nos presentear com sua ficção – que possa seguir com sua obra, auxiliando a habitar a realidade que nos cabe viver.
(*) Psicanalista, membro da APPOA e do Centro Lydia Coriat