O Vasco contra um século de elitismo e racismo

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São Januário está fechado à torcida depois de juiz apontar que estádio é ‘cercado pela comunidade da Barreira do Vasco, de onde houve comumente estampidos de disparos de armas de fogo’

Por Oscar Valporto, compartilhado de Projeto Colabora




Protesto na comunidade vizinha a São Januário pelo fechamento do estádio aos torcedores: Vasco volta a ser alvo de elitismo e racismo (Foto: Daniel Ramalho / Vasco da Gama)

Em 2023, 100 depois, o Vasco é alvo novamente de elitismo, demofobia e racismo, prova cabal de como essas chagas estão enraizadas na sociedade brasileira – e como é difícil se livrar de um passado escravocrata num presente violentamente desigual. Palco de mais um episódio de selvageria das facções organizadas das torcidas (tema para o segundo tempo desta coluna), o Estádio de São Januário está proibido de receber torcedores há dois meses por decisão do Judiciário estadual, apesar de já liberado pelos tribunais esportivos.

“Vê-se que todo o complexo é cercado pela comunidade da Barreira do Vasco, de onde houve comumente estampidos de disparos de armas de fogo oriundos do tráfico de drogas lá instalado o que gera clima de insegurança para chegar e sair do estádio”.

Esta absurda condenação ao Estádio de São Januário está registrado nos anais do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Faz parte do ofício que o juiz Marcelo Rubioli, de plantão naquela noite de 22 de junho no Juizado Especial do Torcedor e Grandes Eventos, enviou ao Ministério Público, pedindo apuração do tumulto no jogo entre Vasco x Goíás após a sexta derrota consecutiva do time. Integrantes das facções organizadas do Vasco atiraram sinalizadores e outros objetivos nos jogadores, alguns tentaram invadir o campo, contidos pela segurança do clube. A Polícia Militar, com sua habitual truculência, aumentou a confusão, disparando bombas de gás e usando spray de pimenta nas arquibancadas: até tiros para o ar foram disparados. O tumulto se espalhou pelo lado de fora, mas não houve registro de feridos. Vândalos das organizadas conseguiram entrar no estacionamento e depredaram carros de jogadores do Vasco

A fachada do Estádio de São Januário, em estilo neoclássico, é tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional). O estádio foi construído com as contribuições da grande colônia portuguesa no Rio de Janeiro e inaugurado em 1927: era então o maior estádio das Américas e, ainda hoje, o maior estádio particular do Rio. Getúlio Vargas costumava fazer lá seus discursos aos trabalhadores durante o Estado Novo; em 1943 e 1945, São Januário foi palco dos desfiles das escolas de samba no Carnaval. Erguido numa parte menos valorizada de São Cristóvão (hoje batizada de bairro São Januário), o estádio está entre moradias de baixa classe média e a favela da Barreira do Vasco.

“São ruas estreitas, sem área de escape, que sempre ficam lotadas de torcedores se embriagando antes de entrar no estádio”.

Toda a história do Vasco e seu estádio não impediu que o juiz fizesse esse relato ao pedir providências ao MP. O argumento foi repetido integralmente pelo promotor Rodrigo Terra, na Ação Civil Pública, que conseguiu a suspensão do estádio. O Vasco vem tentando derrubar a decisão na Justiça sem sucesso, apesar de os outros magistrados não repetirem as barbaridades iniciais no processo.. O Vasco já foi autorizado a voltar a usar seu estádio, mas sem a presença de torcedores. O Judiciário não vê garantias à segurança de torcedores, jogadores e outros profissionais durante os jogos.

A segurança no estádio (em qualquer estádio) pode e deve ser discutida, analisada, aperfeiçoada. Mas a opinião do juiz, repetida pelo Ministério Público, é simplesmente elitista, demofóbica e racista.

A fachada do quase centenário Estádio de São Januário, inaugurado em 1927: patrimônio histórico do Rio de Janeiro (Foto: Vasco da Gama / Divulgação)
A fachada do quase centenário Estádio de São Januário, inaugurado em 1927: patrimônio histórico do Rio de Janeiro (Foto: Vasco da Gama / Divulgação)

Sim. São Januário é vizinho de uma comunidade favelada. Mas a Barreira do Vasco não é maior nem mais palco de tiros do que outras na cidade – é menor em tamanho e palco de menos episódios violentos. Para comparação, apenas a linha do trem separa o Maracanã – hoje sob administração de Flamengo e Fluminense – do Morro da Mangueira, conhecido pelo seu samba, mas também pelos conflitos armados, muitos com a participação da polícia. O Engenhão – Estádio Nilton Santos, concessão do Botafogo – também tem favelas em sua vizinhança. É assim o Rio de Janeiro e os exemplos poderiam ser multiplicados em áreas fora do esporte: a cidade convive com comunidades faveladas e erguer muros – como quer fazer o governador na Linha Vermelha – não é solução: só aumenta a desigualdade, o apartheid, a demonização dos pobres.

Sim. Há torcedores embriagados em dias de jogos no entorno do estádio, de qualquer estádio, um problema global: não são raros tumultos provocados por torcedores bêbados na Inglaterra, na Alemanha, na Itália. Também há registros de conflitos assim pelo Brasil afora e – pasme, senhor juiz – em estádios instalados nos bairros mais ricos.

Portanto, há elitismo, demofobia e racismo no cerne da decisão judicial que impede o Vasco de jogar com torcida em São Januário.

Mas, antes de encerrar esse jogo, voltemos aquela semana de junho: na véspera de Vasco x Goiás, torcedores do Santos, sempre liderados pelas facções organizadas, invadiram o campo do estádio da Vila Belmiro para agredir jogadores do Corinthians (que vencia o jogo) e do seu próprio time. A confusão no gramado seguiu para as arquibancadas e terminou do lado de fora com torcedores atirando objetos e a polícia bombas de gás. A Justiça desportiva interditou o estádio por 10 jogos (punição depois reduzida) mas não houve ação no Judiciário estadual nem culparam o residencial bairro da Vila Belmiro pelo conflito.

As grandes facções organizadas são uma praga do futebol – no Brasil e no mundo inteiro, em muitos lugares, responsáveis por atos violentos e também racistas. Há um viés claramente fascista em muitas dessas facções na Europa: há algumas por aqui também. Mas o que é diferente no nosso país é – como em tantas áreas da nossa sociedade – a impunidade. A Polícia, o Ministério Público e o Judiciário deviam estar mobilizados para colocar na cadeia esses criminosos do mundo do futebol. Todos. Por vandalismo, por destruição do patrimônio, por lesão corporal. Se esses crimes fossem exemplarmente punidos, talvez as instituições não precisassem tratar de casos de homicídios ligados às facções organizadas.

Por outro lado, a tal justiça desportiva – ligada a entidades e clubes e, portanto, sujeita a seus interesses – precisa também agir com mais rigor contra os clubes para que eles assumissem a responsabilidade de controlar seus “torcedores”. Com a interdição de estádios e afastamento da torcida, em alguns casos. Mas também com multas pesadas, perda de pontos e até rebaixamento para casos mais graves e reincidentes. Só com o fim da impunidade, podemos ter a redução da violência do futebol – como em outros setores.

Mas, infelizmente, da mesma forma que o elitismo, a demofobia e o racismo, a impunidade parece estar enraizada na sociedade brasileira.

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Nos acréscimos dessa crônica, voltamos ao século passado: em 1924, os rivais do Vasco criaram uma nova liga que, para aceitar a filiação do clube de São Januário, exigiu a exclusão de 12 jogadores por não apresentarem “condições sociais adequadas ao convívio esportivo” – alguns negros, alguns analfabetos, todos trabalhadores pobres. O Vasco dispensou a filiação com uma carta, assinada pelo seu presidente, José Augusto Prestes, e conhecida como Resposta História, com esse trecho que merece ser sempre republicado. “São esses doze jogadores, jovens, quasi todos brasileiros, no começo de sua carreira; e o acto publico que os pode macular nunca será praticado com a solidariedade dos que dirigem a casa que os acolheu, nem sob o pavilhão que elles com tanta galhardia cobriram de glorias”.

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