Por que os diálogos vazados sobre Alexandre de Moraes não são a Vaza Jato da extrema direita
Por Tatiana Dias e Paulo Motoryn, compartilhado de The Intercept
Diálogos vazados mostraram que Alexandre de Moraes estaria pedindo informações de forma extraoficial à Justiça Eleitoral para embasar suas decisões no inquérito das fake news. Esse é o foco de uma série de reportagens da Folha de S.Paulo que caíram como uma bomba na tarde de terça-feira, 13 de agosto, gerando interpretações polarizadas sobre o significado das revelações. Seria essa a prova cabal de que o STF estaria agindo para criminalizar os inimigos políticos?
Também atraiu comparações imediatas com a Vaza Jato, uma série de revelações publicadas pelo Intercept Brasil a partir de 2019 que expôs violações flagrantes na Operação Lava Jato. Como o assunto é extremamente técnico e legalista, conversamos com especialistas para ajudar a entender o caso.
As reportagens da Folha afirmam que o gabinete de Moraes solicitou informações à Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, a AEED, órgão do TSE responsável por elaborar relatórios sobre fake news eleitoral, em pelo menos “duas dezenas de casos” de forma extraoficial.
Em um dos casos descritos, o juiz Airton Vieira, assessor de Moraes no STF, enviou um áudio a Eduardo Tagliaferro, então chefe da AEED. Na gravação, Vieira afirmou que Moraes “cismou” e pediu alterações em um um relatório para “satisfazer sua excelência”.
O caso em questão eram postagens de Rodrigo Constantino. Dois dias depois, Vieira e Moraes assinaram uma ordem judicial pedindo a derrubada de contas de redes sociais de Constantino e Paulo Figueiredo, influenciador de direita ex-Jovem Pan. Nove dias depois, o Brasil assistiria à tentativa de golpe em 8 de Janeiro.
O colunista da Folha Bruno Boghossian reconhece que a movimentação de Moraes foi a única defesa consistente da democracia brasileira naquele período. Mas, para ele, “a decisão de queimar etapas em segredo e simular passos desse processo” indica “que Moraes escolheu ignorar alguns limites à sua autoridade”.
A série de reportagens foi rapidamente apelidada de “Vaza Toga” pelo site Antagonista (o apelido até agora só pegou por lá). Em poucas horas, motivou pedidos de impeachment de Moraes. Um dos que se manifestaram mais calorosamente foi, não por acaso, o ex-procurador Deltan Dallagnol, que não perdeu tempo em fazer a comparação: disse que as novas revelações são “mil vezes pior do que a Vaza Jato”.
A associação com a Vaza Jato foi feita de forma imediata não apenas por Deltan e veículos de direita – mas por parte da imprensa corporativa também. Primeiro porque Glenn Greenwald, jornalista que saiu do Intercept Brasil em novembro de 2020 e que participou da Vaza Jato, é co-autor da reportagem da Folha.
Segundo porque as reportagens estão sendo apresentadas por alguns como um conluio de uma justiça empenhada em criminalizar seus inimigos políticos – o que, superficialmente, parece se assemelhar ao que foi mostrado na Vaza Jato.
Assim como Lula havia sido preso injustamente, como se comprovou, também interessa aos bolsonaristas uma anistia ampla depois que muitos foram presos e implicados criminalmente após os atos de 8 de janeiro.
Mas o consenso entre os especialistas jurídicos com quem conversamos é que um caso não tem nada a ver com o outro.
Por que o caso de Alexandre de Moraes não é comparável com a Lava Jato
Logo de saída, é preciso entender a natureza das investigações e o fato de que a justiça eleitoral é um sistema diferente da justiça criminal, com algumas peculiaridades muito importantes.
A Lava Jato foi um conjunto de investigações conduzidas no Ministério Público Federal e na Procuradoria Geral da República. Mas, como revelamos, os procuradores seguiam ordens do então juiz Sergio Moro, que seria responsável por julgar o caso.
Moro apressou a operação, sugeriu que os procuradores mudassem a ordem das fases, deu conselhos, sugeriu dicas e testemunhas. Agiu como chefe do então procurador Deltan Dallagnol. Se intrometeu no trabalho do MPF, atuando como uma espécie de assistente informal de acusação e fez o que é proibido no sistema de justiça brasileiro: confundiu as figuras de julgador e acusação.
A nossa série de reportagens também mostrou que a Lava Jato tinha uma série de práticas de investigação informais: Deltan Dallagnol chegou a pedir, via chat, que o Coaf levantasse informações fiscais sigilosas de alvos da operação – dados que dependiam de autorização judicial para serem obtidos.
As mensagens também provaram que o MPF agiu politicamente, inclusive de olho nas eleições, para condenar Lula – ainda que o próprio Dallagnol tivesse dúvidas da solidez das provas contra o então ex-presidente.
‘Na Vaza Jato, era um diálogo proibido entre órgão que acusa e julga. Não existe bate-papo do Alexandre com PGR ou advogados envolvidos no processo’.
O caso de Moraes é muito diferente. Não se trata de comunicação entre dois órgãos diferentes, como MPF e justiça. Mas, sim, entre dois tribunais, o STF e o TSE. Moraes, na época, além de ministro, também era o presidente do TSE – portanto, chefe da AEED.
Para o advogado criminalista Fernando Hideo Lacerda, mestre e doutor em Direito, a reportagem da Folha confunde as atribuições de Moraes no STF e no TSE.
“É fato que o ministro Alexandre de Moraes exerceu funções distintas e concomitantes, fiscalizando as eleições e investigando crimes contra a democracia”, ele disse ao Intercept Brasil. “Mas não por caprichos pessoais ou interesses próprios, e sim no legítimo exercício dos cargos de presidente do TSE e ministro do Supremo Tribunal Federal”.
Os diálogos revelam tratos entre dois de seus assessores, o que difere dos das revelações da Vaza Jato, em que as conversas mostram o conluio de diversos procuradores do MPF com vários órgãos externos e fiscalizadores.
“Na Vaza Jato, era um diálogo proibido entre órgão que acusa e julga. Não existe bate-papo do Alexandre com PGR ou advogados envolvidos no processo”, disse ao Intercept o advogado Fernando Neisser, mestre e doutor pela Faculdade de Direito da USP, além de membro da coordenação acadêmica da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político.
Ele também explica que o TSE tem uma função administrativa: organizar as eleições. Por isso, diferentemente de outros tribunais, tem poder de polícia. Isso significa que a justiça eleitoral pode tomar providências de forma ativa, sem ter uma provocação da defesa ou da acusação – talvez a maior peculiaridade do tribunal e um ponto que tem sido objeto de muitas críticas pelos manifestantes do 8 de janeiro e seus apoiadores.
A Assessoria Especial de Enfrentamento à Desinformação, a AEED, foi criada pela gestão do ministro Edson Fachin no TSE em agosto de 2019 para as eleições municipais de 2020. Se tornou permanente em 2021. Dentro do inquérito das fake news, seus relatórios, com prints de posts golpistas ou mentirosos, serviram para embasar uma série de ordens judiciais.
“No exercício da presidência do TSE, é atribuição do Ministro e sua equipe o exercício do poder de polícia, comum a todos os órgãos da Justiça Eleitoral”, explica Hideo. “Nesse ponto, o combate à desinformação passa por relatar e documentar a divulgação de notícias falsas e discursos de ódio, no legítimo exercício da função administrativa de organizar e fiscalizar as eleições”.
Ou seja: caso haja indícios de crime, é dever da justiça eleitoral comunicar os órgãos. “Pelo que consta na matéria, foi exatamente o que ocorreu, com a particularidade de que o então presidente do TSE também é o ministro do STF designado relator do inquérito das fake news, cuja legalidade já foi reconhecida pelo plenário da Corte”, diz Hideo.
O uso da AEED para investigar bolsonaristas no inquérito das fake news não era segredo, tampouco é novidade. Os pedidos de Moraes tinham diversas menções à assessoria, justificando que os posts levantados atingiam “a integridade e a normalidade do processo eleitoral”.
Por isso, o órgão já estava na mira dos críticos: o próprio Deltan Dallagnol, ex-coordenador da força tarefa da Lava Jato e ex-deputado (seu mandato foi cassado em 2023), o chamou de “ministério da verdade” de Moraes, em uma alusão ao romance distópico “1984”, de George Orwell. Dallagnol já havia questionado a legitimidade jurídica da AEED perante o STF.
AEED levantava informações públicas em redes sociais
Outra diferença entre os dois casos é a natureza das informações: os dados levantados pela AEED eram posts públicos em redes sociais. Não se tratava de acesso a dados sigilosos, monitoramentos ilegais, como no caso da Abin paralela, nem nenhuma informação que precisasse de ordem judicial para ser coletada, como aconteceu na Lava Jato. Eram posts, vídeos, tuítes.
Como explicou na rede social X o professor de direito penal David Tangerino, da Uerj, informações públicas, como posts de redes sociais, podem entrar nos autos como fruto de comunicação de qualquer um no contexto de poder de polícia.
“A única coisa que AEED faz são informações públicas. Não pega material de ninguém”, diz Fernando Nesser. Para o advogado, diante dos indícios de que um perfil está distribuindo conteúdo criminoso, caberia à justiça eleitoral, portanto, checar para averiguar se houve crime.
Segundo a reportagem da Folha, um dos problemas é que as decisões de Moraes e Airton Vieira sugeriram que os relatórios da AEED eram produzidos e enviados ao STF de forma espontânea – e não “encomendados” por Moraes.
Os ofícios do STF atribuem as informações à AEED e ao “sistema de alertas e monitoramento” de parceiros do STF, sem explicação de como isso se originou. Segundo Fernando Nesser, no entanto, não há nenhuma exigência no Código de Processo Penal para que esse tipo de requisição seja feita formalmente pelos assessores.
Alguns dos diálogos nas reportagens revelam, de fato, práticas opacas – como a sugestão de alteração de datas, Airton Vieira sugerindo para o chefe da AEED “usar sua criatividade”, e Tagliaferro afirmando que “vai dar um jeito”. Não fica claro, no entanto, se esses procedimentos deram origem a decisões concretas de Moraes.
Ministros defendem Moraes – mas especialistas criticam concentração de poder
Emílio Peluso Neder Meyer, professor de Direito Constitucional da Universidade Federal de Minas Gerais, reconhece que a atuação de Moraes é passível de críticas. Segundo ele, o principal aspecto a ser criticado seria o número muito grande de inquéritos policiais conduzidos pelo STF, o que causa, para ele, uma “excessiva concentração de competências nas mãos de um mesmo ministro do Supremo”.
Segundo o professor da UFMG, “a concentração talvez não seja salutar para o próprio Supremo”. “Agora, se essa concentração gera algum tipo de nulidade, precisamos verificar em cada ato. Pelo que foi apresentado até o momento, não me parece que a gente tenha um grande material nas mãos”, aposta Peluso.
Moraes declarou, na tarde de terça, que os ritos “estão devidamente documentados nos inquéritos e investigações em curso no STF, com integral participação da Procuradoria-Geral da República”.
Parte do STF já saiu em defesa de Alexandre de Moraes, classificando a troca de mensagens como normal. O ministro Luis Roberto Barroso, presidente do STF, chamou as reportagens de “tempestades fictícias”. “Todas as informações que foram solicitadas pelo ministro Alexandre de Moraes referiam-se a pessoas que já estavam sendo investigadas”, disse.
Para Flávio Dino, se questionar o exercício de ofício do poder de juiz é “inusitado”. “Me sinto muito impactado por esse questionamento em que o Tribunal Superior Eleitoral exerce o poder de polícia, manda elaborar relatórios, esses relatórios são apontados a autos existentes e isso é visto como violação de rito”, ele declarou.
Já Gilmar Mendes afirmou que qualquer comparação entre a conduta de Moraes com a Lava Jato seria irresponsabilidade. “É uma tentativa desesperada de desacreditar o Supremo Tribunal Federal, em busca de fins obscuros relacionados à impunidade dos golpistas”, declarou o ministro.
A ofensiva da extrema direita para anistiar envolvidos com golpismo
O contexto da reportagem publicada pela Folha é uma ofensiva que se arrasta por meses contra o STF brasileiro, em especial Alexandre de Moraes, com alegações de uma censura indevida e ilegal do judiciário brasileiro. A chamada “ditadura do Xandão“.
No início de abril, Elon Musk armou um circo com seu Twitter Files. Os arquivos divulgados pela empresa mostram seus advogados reclamando das ordens de Moraes, que pediu o bloqueio de contas envolvidas em manifestações golpistas.
Depois, o próprio Musk tuitou contra Moraes, mobilizando Bolsonaro pai e Eduardo, além de Nikolas Ferreira, Paulo Figueiredo e Allan dos Santos, entre outros do movimento bolsonarista.
Extrema direita tenta emplacar o PL da anistia – e já apresentou mais de 20 pedidos de impeachment contra Moraes.
Com a extrema direita mobilizada, Musk usou sua rede para peitar uma ordem judicial do Supremo Brasileiro – o que é ilegal, segundo o Marco Civil da Internet – e pedir o impeachment de Alexandre de Moraes, ecoando um pedido recorrente dos manifestantes de 8 de janeiro. O ministro acabou incluindo o bilionário no inquérito de milícias digitais.
Poucos dias depois, foi a vez do Comitê Judiciário da Câmara dos Representantes dos Estados Unidos, recheado de republicanos trumpistas, que divulgou decisões sigilosas do Supremo Tribunal Federal do Brasil relacionadas ao X, antigo Twitter, e outras redes sociais.
O relatório, de 513 páginas, foi intitulado “O ataque à liberdade de expressão no exterior e o silêncio da administração Biden: o caso do Brasil”. Fruto da entrega de documentos pelo X, o documento tinha um objetivo político claro: pintar um cenário de censura no Brasil para atacar Joe Biden, então oponente de Donald Trump nas eleições dos EUA.
O documento não provocou nenhuma mudança concreta, mas ajudou a inflamar os ânimos dos bolsonaristas que têm se organizado para emplacar o PL que anistia os condenados pelos atos golpistas de 2023. Ainda há a lista de duas dezenas de pedidos de impeachment de Alexandre de Moraes, que agora ganhará mais um que será apresentado na esteira da reportagem da Folha.
O jornal chegou a sugerir, em manchete nesta quinta-feira, que os diálogos abrem brechas para solicitação de nulidade das provas – ainda que o próprio texto reconheça que especialistas divergem desta interpretação.
O professor Emilio Meyer também é cauteloso sobre a possibilidade de anistia a Bolsonaro e dos acusados de tentativa de golpe. “As responsabilizações que vieram relativas à tentativa de golpe estão ainda materializadas naqueles fatos claros, os ataques às praças de justiça e poderes, as imagens de câmeras, as participações que renderam prisões imediatas”.