E o Bem Blogado volta com a ótima escritora e jornalista Sonia Nabarrete (foto). Desta vez com um viciante miniconto – #quarentextos –
Cigarro
Eram estudantes da escola pública nos anos 1970 e, enquanto o país vivia a ditadura, a maior transgressão deles consistia em fumar. Ele dividiu com ela os primeiros cigarros Continental sem filtro. Depois, quando arrumou uma grana dando aulas particulares de inglês, conseguiu fumar Hollywood e Minister, ambos com filtro.
Entre uma tragada e outra, se beijavam. Achavam divertido soltar a fumaça na boca do outro, antes que outras invasões se configurassem. Dividiam também o chicletes, para que ninguém notasse o hálito de fumante.
Tiveram juntos a primeira vez e tantas outras, seguidas do cigarro, saboreado na paz da paixão apaziguada. Mas quando ela pedia com a voz levemente rouca “me dá um trago”, ele se colocava em prontidão e tudo recomeçava.
Na faculdade, foram estudar em cidades diferentes e se separaram. Nunca mais soube dela até encontrá-la, muitos anos depois, em uma rede social, durante a pandemia.
Sentiu uma súbita vontade de fumar depois de ter conseguido largar o vício após muitos anos e o susto de um enfarte.
Procurou nas fotos a adolescente que despertara a primeira paixão. Racionalmente, estava preparado para ver os sinais do tempo, mas, mais do que isso, viu os sinais do cigarro.
Ela tinha a pele muito enrugada e os dentes amarelados, um certo fatalismo no olhar. Parecia mais velha do que era.
Por meio de um amigo comum, descobriu seu telefone. Ligou. Ela atendeu com voz rouca de fumante velha. Ele disse que era engano.