O desembargador, dono de uma mansão em Búzios, pediu na Justiça a demolição do segundo andar da casa ao lado. Graças a um juiz transferido com sua anuência, conseguiu
Por Arthur Guimarães, compartilhado de Piauí
Carlos Spingola Junior, um reumatologista de 47 anos, planejava uma vida pacata com a família. Depois de anos juntando suas economias, contratou um financiamento bancário e iniciou a construção de uma casa em Búzios, cidade famosa pelas praias e multidões de turistas argentinos. Pretendia se mudar para lá e usufruir de uma rotina calma, livre dos estresses de uma metrópole como o Rio de Janeiro. Iria acompanhado da namorada e dos pais. “Sempre quis morar numa casa grande, com cachorro, numa cidade tranquila”, diz.
Junior adquiriu um terreno no bairro de Geribá, a poucos metros da principal enseada de Búzios. As obras começaram em 2019 e avançaram mesmo na pandemia. Em poucos meses, os pedreiros construíram a sala, uma piscina e duas suítes no térreo. Estavam erguendo as paredes do segundo andar quando, em outubro de 2020, foram forçados a parar devido a uma liminar da Justiça. A 1ª Vara Cível de Búzios, acionada por um vizinho, constatou que a obra não tinha licenciamento do município e, portanto, estava irregular.
O licenciamento estava mesmo vencido. Mas o imbróglio se resolveu rapidamente: no fim daquele mês, Junior renovou a licença junto à prefeitura e informou a Justiça. Imaginava que seria o fim do processo, mas não foi. Em dezembro, a reclamação mudou de tom: o problema agora não eram só os documentos, mas também a privacidade. O morador da casa ao lado – uma mansão com heliponto e vista para o mar – reclamou que teria sua intimidade devassada pelo recém-chegado. Isso porque a casa de Junior teria dois andares. Lá do alto, segundo o vizinho, ele teria uma vista privilegiada de todo o seu terreno.
Junior buscou um acordo. Sugeriu alterar a planta da casa para que, em vez de varandas, o andar de cima tivesse pequenas janelas. Não bastou. Propôs então montar um painel de madeira com cerca viva para bloquear a vista. O vizinho não aceitou. Como último recurso, Junior sugeriu, numa audiência virtual, construir um paredão de concreto fechando os fundos de seu imóvel, de modo a impossibilitar que se enxergasse o vizinho. Nada feito.
O processo se arrastou por quase quatro anos. A obra, nesse meio tempo, ficou paralisada por ordem judicial. Junior passou a morar praticamente acampado na casa incompleta, dormindo no sofá, aguardando uma resolução. Em agosto de 2024, ela veio: o juiz Nando Machado Monteiro dos Santos determinou que o segundo andar do imóvel fosse demolido. Vitória do vizinho, que não é um cidadão qualquer. Chama-se Luiz Zveiter, tem 69 anos, é um influente desembargador e ex-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro.
Zveiter é o decano do Órgão Especial, colegiado responsável por uma série de questões administrativas, como aprovar a proposta de orçamento anual do Tribunal de Justiça e preparar os concursos para a contratação de magistrados. Também cabe ao Órgão Especial decidir a vara onde cada juiz do estado será alocado. Assim foi que, em julho deste ano, o órgão decidiu enviar Nando dos Santos para a comarca de Búzios. Dois meses depois de sua chegada, o imbróglio da casa, que já tinha passado pelas mãos de sete juízes, se resolveu rapidamente em benefício de Zveiter. Quatro dias depois de publicar a sentença, Santos foi transferido novamente. Trocou Búzios por Belford Roxo, na Baixada Fluminense.
O advogado Fernando Christian Brandão Silveira, que representou Zveiter no processo de Búzios, argumentou que seu cliente, por ser desembargador, precisava de segurança absoluta em sua casa de veraneio. Afirmou que ele é um magistrado “atuante neste tribunal, com várias sentenças e acórdãos de grandes repercussões no âmbito do estado e do país.” Prosseguiu no raciocínio: “a sua segurança e a de sua família é uma obrigação de todos, para que o autor continue julgando os processos com imparcialidade e sem medo.”
Santos, o juiz recém-chegado, acatou a tese. Evocou o chamado direito à privacidade, tomando como bússola um trecho do Código Civil que diz: “O proprietário ou o possuidor de um prédio tem o direito de fazer cessar as interferências prejudiciais à segurança, ao sossego e à saúde dos que o habitam, provocadas pela utilização de propriedade vizinha.” Também citou como referência o jurista Silvio de Salvo Venosa, um estudioso do assunto.
A piauí mostrou a Venosa a sentença e a justificativa do juiz. “Nada a ver”, avaliou o jurista, que é desembargador aposentado do Tribunal de Justiça de São Paulo. “É um poder discricionário do juiz, em cada caso, verificar se a obra vizinha está sendo violada ou não”, disse Venosa. Mas mandar demolir, segundo ele, é uma medida extrema, recomendável apenas quando não há outra solução possível. “Parece que o juiz exagerou na decisão.”
Fernando Neisser, professor da Faculdade de Direito da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo (FGV-SP), concorda. Do seu ponto de vista, o direito à privacidade só deve ser aplicado a casos extremos, quando há risco claro à intimidade de alguém. “Se constroem um prédio ao lado da minha casa, e eu, que gosto de ficar à vontade na piscina, perco essa liberdade, é um dissabor da vida. Não tenho o direito de derrubar o prédio porque ele violou minha privacidade.” Venosa faz uma leitura similar: “Se a pessoa quer o direito de estar só e não ser vista pela vizinhança, que utilize então dos meios necessários para não ser vista.”
O Código Civil brasileiro proíbe que se abram janelas, terraços ou varandas a menos de 1,5 metro do terreno de um vizinho. Não foi o caso em Búzios, segundo uma perícia feita a pedido da Justiça. Mesmo que fosse, havia uma alternativa à demolição: o juiz poderia simplesmente ordenar que a vista fosse tampada. Junior propôs isso, chegando inclusive a montar simulações de como ficaria a cerca viva – construída com madeira e coberta de plantas. Nessas projeções, não se vê a casa de Zveiter. O juiz, contudo, ignorou o projeto.
Tomando como base o argumento do advogado de Zveiter, a piauí perguntou ao Tribunal de Justiça do Rio se “existe alguma lei, norma ou regra que resguarde a segurança e a privacidade do magistrado fluminense e que impeça que um vizinho tenha visão de sua residência”. A resposta da assessoria, enviada por meio de uma nota, foi sucinta: “Não.”
Simulação da cerca viva apresentada pela defesa de Carlos Junior. Não adiantou (Crédito: Reprodução)
Atransferência de juízes de uma vara para outra é chamada, no jargão jurídico, de “remoção”. A remoção de Nando Santos para a 1ª Vara Cível de Búzios foi anunciada em 1º de julho, numa sessão pública do Órgão Especial. O magistrado de 32 anos, acomodado até então em Angra dos Reis, se candidatou à vaga usando o critério de antiguidade – que não tem a ver com idade ou anos de trabalho, mas com a quantidade de tempo em que o juiz está num mesmo degrau da carreira. Zveiter, por ser o decano, foi o primeiro a votar. Aprovou o pedido do colega. Os demais 23 desembargadores presentes fizeram silêncio, em concordância, e o nome foi aprovado por unanimidade. Santos era o único candidato.
Pouco mais de um mês depois, os desembargadores analisaram um novo pedido de remoção de Santos, dessa vez para Belford Roxo. Por regra, um juiz deve completar ao menos um ano de trabalho na comarca antes de pedir outra transferência. Mas, graças a uma brecha legal (resultado de um descompasso entre novas regras da carreira e normas internas do tribunal), Santos pôde se candidatar. Em 19 de agosto, seu pedido foi analisado pelo Órgão Especial e aprovado. Novamente, a sessão começou por Zveiter, que mais uma vez votou em favor do juiz. O critério dessa vez não foi antiguidade, mas “merecimento” – conceito vasto, que costuma ser avaliado à luz da produtividade dos magistrados, de eventuais punições e de sua “presteza no exercício das funções”. Santos, novamente, era o único postulante. Novamente, foi aprovado em silêncio pelos demais desembargadores. (Colaborou para a aprovação, segundo a assessoria do tribunal, o fato de que a vaga estava “ociosa por ausência de interessados em outros processos de remoção anteriores”.)
Santos publicou a sentença em favor de Zveiter no dia 30 de agosto, uma sexta-feira, às 21h29. Eram suas últimas horas à frente da 1ª Vara Cível de Búzios. O despacho que oficializou sua transferência para Belford Roxo foi publicado na terça-feira seguinte, dia 3 de setembro. O juiz, desde então, está acomodado na 2ª Vara Criminal – um setor com um volume de processos quase 70% inferior ao de Búzios e bem mais próximo da capital.
O Judiciário, inevitavelmente, é permeado por conflitos de interesse. Juízes, afinal, são integrantes da sociedade tanto quanto as outras pessoas. É comum que se deparem com processos que colidem com suas vidas pessoais – seja por que envolvem familiares e amigos ou porque seu desfecho pode beneficiar ou prejudicar seus interesses pessoais. Por isso existe o conceito da suspeição: o magistrado, ao constatar que é parte interessada de um processo que está julgando, pode se declarar suspeito e se afastar do caso. Se não o fizer por conta própria, os demais participantes do processo podem exigir seu afastamento.
A resolução que trata da transferência de juízes, contudo, não prevê uma medida dessa natureza. Não cita qualquer conduta ética que deva ser observada pelos desembargadores que detêm poder de voto. Zveiter, cuja vida pessoal foi impactada pelas decisões que ajudou a tomar no Órgão Especial, não demonstrou desconforto em nenhuma das duas votações. Procurado pela piauí, ele não se manifestou até a publicação desta reportagem.
A piauí perguntou a Santos por que ele quis ser transferido para a cidade praiana. E por que, passados apenas dois meses, pediu para se mudar para Belford Roxo. O juiz preferiu não responder, e pediu que os questionamentos fossem enviados à assessoria de imprensa do tribunal. A assessoria, por sua vez, afirmou que é vedado ao magistrado “manifestar, por qualquer meio de comunicação, opinião sobre processo pendente de julgamento, seu ou de outrem, ou juízo depreciativo sobre despachos, votos ou sentenças, de órgãos judiciais”.
Procurada pela piauí, a Prefeitura de Búzios afirmou que a casa do médico Carlos Junior “encontra-se devidamente licenciada, cumprindo todas as exigências das secretarias municipais envolvidas no processo. Ao longo do período de construção, desde 2018, não houve qualquer irregularidade que tenha levado à paralisação ou impedimento para a continuidade da obra com base nas leis municipais vigentes. Apenas pequenos ajustes foram solicitados durante o processo, os quais, após as devidas notificações, foram atendidos pelo proprietário tendo sido sanados de acordo com as normativas municipais.”
Junior, apesar disso, está se habituando a uma casa construída pela metade. Levou uma reprimenda na Justiça, em fevereiro, quando pedreiros foram fotografados com a mão na massa no segundo andar de seu imóvel. A obra estava embargada, e por isso o juiz o ameaçou com uma multa de 100 mil reais por descumprimento de ordem judicial. Junior diz que os funcionários estavam apenas construindo um telhado para proteger a casa de intempéries. “Entrava água em tudo, quando chovia. As madeiras, que eram caras, começaram a estragar.” A sentença do juiz Nando Santos deu trinta dias para Junior demolir o segundo andar de sua casa. Ele ainda avalia se vai recorrer em segunda instância.