País sede da Copa do Mundo é denunciado por trabalho análogo à escravidão, por não pagar salários aos imigrantes contratados para erguer estádios, e deixar que milhares morressem por falta de segurança
Por Rosely Rocha, editado por Marize Muniz, compartilhado do Portal da CUT
Bolsonaro entrega camisa da seleção ao emir Tamim bin Hamad Al-Thani, em visita ao país em 2019
Cerca de 6,7 mil de trabalhadores imigrantes podem ter morrido por falta de segurança e por exposição ao clima extremamente quente, de até 50º, no Qatar, durante a construção dos estádios faraônicos e mais caros do planeta para a Copa do Mundo de Futebol, que tem início no próximo domingo (20).
Além das milhares de mortes por acidentes de trabalho, há informações de que 500 casos (7%) foram suicídios e muitos deles podem estar ligados às condições de trabalho degradantes desses trabalhadores. Essas mortes teriam ocorrido entre 2010, ano em que a Fifa anunciou o Qatar como sede da Copa, e 2020.
Em todo esse período, movimentos sindicais e representantes de ONGs criticaram a Fifa pela escolha do Qatar como país sede justamente por causa das denúncias contra situações precárias de trabalho.
Agora, a três dias do início da Copa, quando nos campos que custaram milhares de vida entrarão os profissionais que estão entre os mais bem pagos do mundo, o Qatar volta a ocupar manchetes de jornais por causa de uma decisão desumana, típica dos líderes de regimes autoritários. Comandado com mão de ferro e poder absoluto pela dinastia Al Thani de extrema direita, o Qatar se recusou a indenizar as famílias dos imigrantes mortos, segundo a Anistia Internacional, organização de Direitos Humanos.
Também a Organização Internacional do Trabalho (OIT), informou que registrou mais de 34 mil reclamações, entre outubro de 2021 e outubro de 2022 sem que as autoridades do país tomem qualquer decisão para resolver os conflitos trabalhistas.
Trabalho análogo à escravidão
Assim como nos casos de trabalho análogo à escravidão no Brasil os patrões retêm os documentos, como carteira de trabalho. No Qatar, até 2019, o sistema conhecido como kafala permitia que os patrões retivessem os passaportes dos trabalhadores imigrantes. E mais: eles só podiam mudar de emprego com autorização da empresa. Apesar do sistema ter sido mudado há três anos, os imigrantes ainda são obrigados a informar o empregador 72 horas antes de sair do país.
As denúncias contra o Qatar
A denúncia de trabalho análogo à escravidão foi feita a partir de uma reportagem do jornal inglês The Guardian, que fez um levantamento sobre a construção de sete estádios, um novo aeroporto, rodovias, sistemas de transporte público, hotéis e até mesmo uma cidade nova: Lusail, a 25km da capital Doha.
De acordo com documentos obtidos pelos repórteres e com base em informações nas embaixadas dos maiores fornecedores de mão de obra para o Qatar apenas entre os imigrantes da Índia, Nepal e Bangladesh, foram cerca de 500 mortes de trabalhadores (7% do total) em acidentes de trabalho.
Mais de 800 outros trabalhadores morreram em acidentes de trânsito e grande parte deles ocorreram no trajeto para o trabalho e seu retorno por causa das condições precárias do transporte e do tráfego caótico da região. Além disso, há inúmeros e estranhos registros de mortes por “causas naturais” durante o trabalho. Apenas na construção de estádios, foram catalogadas oficialmente 37 óbitos no Qatar.
Estudo desenvolvido pela OIT mostrou ainda “elevado” ou “extremo” risco de estresse térmico, com a temperatura corpórea dos operários subindo a 39° nas atividades laborais a céu aberto durante os quatro meses mais quentes do ano. É bem possível, portanto, que o trabalho sob calor intenso possa ter atuado como causa direta ou indireta para esse misterioso número de mortes por “causas naturais”, que vitimou pessoas jovens e saudáveis, como revelou a reportagem do Guardian.
A CUT tem acompanhado a situação dos trabalhadores no Qatar em parceria com outras entidades internacionais, como a Street Net, que atua quando há grandes eventos esportivos, em prol do “trabalho decente”.
“Em alguns países se consegue com apoio do movimento sindical sabermos o que está acontecendo com os trabalhadores, mas em países como o Qatar fica difícil termos informações do que lá ocorre por não ter sindicatos organizados”, afirma o secretário de Relações do Trabalho da CUT Nacional, Ari Aloraldo do Nascimento.
Direitos na Copa de 2014 no Brasil
Logo após o anúncio da Fifa de que o Brasil seria sede da Copa do Mundo de 2014, no governo de Dilma Rousseff (PT), a CUT iniciou uma série de debates sobre os direitos dos trabalhadores e trabalhadoras durante o evento.
A Central iniciou um levantamento sobre os gastos em estádios, infraestrutura, impacto econômico e criação de empregos relacionados ao Mundial, pelo fato de a Copa gerar emprego, renda e benefícios duradouros para toda a população.
No caso da Lei Geral da Copa, a CUT propôs emendas e alterações no projeto e, a partir de negociação com deputados, alcançou a inclusão de alguns pontos. O primeiro refere-se à citação do “direito ao livre exercício de manifestação e a plena liberdade de expressão”.
Outro ponto que constou do projeto incluído a partir de proposta da CUT foi a limitação ao serviço voluntário. Se uma das justificativas para sediar os eventos é o impacto na economia local e a geração de postos de trabalho, o voluntariado – inicialmente previsto em 18 mil pessoas, mas com possibilidade de alcançar 40 mil – não poderia ter a dimensão inicialmente planejada. Portanto, a proposta da CUT visava coibir a substituição de empregos assalariados por voluntários e limitar as atividades que podem ser realizadas desta forma, impedindo o voluntariado nos casos de profissões regulamentadas ou em atividades que possam colocar em risco a segurança do público.
Por fim, dentre as propostas incluídas, estava a campanha por Trabalho Decente realizada oficialmente durante o Campeonato.
“Essas construções dos estádios no Brasil estavam dentro da lógica do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e a questão dos estádios, em que pese na grande maioria serem privados, tinha a ingerência do Estado brasileiro que ajudou a compor via financiamento do BNDES. Por isso tivemos o cuidado de para que os trabalhadores fossem contratados com carteira assinada, e isso foi feito na época. A gente já vinha num processo intenso de negociações com essas empresas”, lembra Ari.
Outro acordo que teve a atuação da CUT foi a de permitir que catadores pudessem adentrar aos estádios e retirar latas, após os jogos, e matérias como madeiras e ferro que sobraram das obras. Outra parceria foi com uma cooperativa do Distrito Federal em que detentos fabricavam bolas de futebol para serem vendidas.
“Já tínhamos o exemplo da Copa da África do Sul, em 2010, quando surgiram as vuvuzelas, fabricadas na China, que eram vendidas em todo o mundo, mas que não levou nenhuma renda aos sul africanos”, conta o dirigente.
Sobre o Qatar
O país também é acusado de reprimir a comunidade LGBTQI+, as mulheres e a oposição ao governo local. Um exemplo da repressão ocorreu nesta terça-feira quando o repórter Rasmus Tantholdt, da emissora TV2, da Dinamarca,que fazia uma entrada ao vivo foi impedido pela polícia de continuar a sua transmissão, mesmo após apresentar os documentos que o autorizavam a trabalhar naquele momento.
Um dos seguranças do chegou a colocar u a mão na lente da câmera. Após o acontecido, Comitê do Qatar e o Qatar International Media Office, que organiza a comunicação do evento, pediram desculpas.
O Qatar tem 2,8 milhões de habitantes e a astronômica renda per capita de US$ 144 mil (22 vezes a do Brasil e 2,5 vezes a dos Estados Unidos), mas é também campeão mundial de concentração de renda.