Obrigada, Bolsonaro

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Apesar de tudo, precisamos reconhecer: o presidente fez muito pela população, que tem a chance de crescer após a experiência do seu governo. Aqui, vou elencar alguns dos presentes que JB nos ofertou.

Por Fabiana Moraes, compartilhado de The Intercept




Jair Bolsonaro, Brazil's president, gives a thumbs up as Sebastian Pinera, Chile's president, not pictured, departs after a joint press conference at the Alvorada Palace in Brasilia, Brazil, on Wednesday, Aug. 28, 2019. Bolsonaro's environmental policies have come under pressure as more than 75,000 fires have swept across the country this year, an 84% increase compared to last year, according to the country's National Institute for Space Research. Photographer: Andre Coelho/Bloomberg via Getty Images
Foto: André Coelho/Bloomberg via Getty Images

É VERDADE QUE ele não foi muito feliz na condução da pandemia, da economia, da educação. Também é verdade que ele não costuma se responsabilizar pelo próprio governo, atribuindo a culpa da inflação, do desemprego, do preço alto da gasolina, de mercúrio retrógrado, etc. aos governadores, à imprensa, ao tempo, ao vírus, ao Congresso, ao Senado. É igualmente real que, sob seu governo, o país tenha atingido recordes de desmatamentos, que a carcaça de frango tenha virado item valorizado no supermercado e que a população vivendo com fome tenha, tristemente, aumentado.

Mas é preciso reconhecer – seja você de esquerda, progressista, liberal, social-democrata, centro-direita, conservador raiz ou nutela, etc. – que Jair Bolsonaro fez muito pela população brasileira. Ouso dizer: fez por esse povo o que nenhum outro/outra chefe de estado já fez. Quando falei a respeito com algumas pessoas, várias concordaram comigo e me lembraram de agradecer ao comandante do executivo por benesses das quais eu não recordava. Decidi reunir algumas dessas manifestações de gratidão ao presidente, e não é a sua baixa popularidade que vai me impedir de fazer isso publicamente.

Primeiro eu agradeço a Bolsonaro por finalmente ter acabado com a disseminada e internacionalizada ideia de que vivíamos em um país cordato e pacífico, onde violência era problema mesmo de morro e “comunidade”. Graças ao presidente, o mundo inteiro entendeu que boa parte daquele povo sorridente que lotava a Disney, fazia enxoval em Miami e queria “educação padrão Fifa” gosta mesmo é de segurar uma arma na mão, e não uma caipirinha.

Graças a Bolsonaro, identificamos como apesar de toda nossa óbvia mistura – realizada fortemente na base do estupro, como mostra esta pesquisa – há tanta gente evocando “pureza da raça”, fazendo apologia ao nazismo e fundando células criminosas como nunca antes neste país.

Eu agradeço a Bolsonaro por desmistificar a ideia de que as Forças Armadas são eficientes e estão a serviço do país. Por expor que boa parte do comando militar não atua pelo patriotismo, pela defesa da constituição ou soberania, e sim em benefício próprio, mirando a manutenção e multiplicação de seus benefícios. Por evidenciar que as FFAA são demasiadamente partidarizadas, com direito a general subindo em palanque sem ser constrangido pelo ato ilegal.

Eu agradeço a Bolsonaro por ter mostrado que, ao contrário do que se pensava, nunca fomos fruto de uma miscigenação festiva e requebrativa. Acabou-se o papo de que “somos todos iguais”, que “alma não tem cor” e que a empregada “é como se fosse da família”. Quando o presidente chama cabelo crespo de um negro de “criatório de baratas” e que “nem para procriar o quilombola serve mais”, ele expõe e finalmente libera esse racismo recalcado de nossa linda nação, aquela que ainda não superou dividir sala de universidade com gente preta ou pagar direito trabalhista a doméstica.

Eu agradeço a Bolsonaro por ser uma espécie de Marie Kondo de nossas relações sociais: ele nos ajudou a definir melhor como e com quem gastar nosso tempo, nossa energia e nosso amor. Agradeço a Bolsonaro por ele ter nos feito entender que parente não é necessariamente família, e que não é por compartilhar a mesma matriz sanguínea que estamos obrigadas ou obrigados a conviver com quem não vê nada demais (“ele só tava brincando!”) em um chefe de estado que boicota vacina, confraterniza com nazistaas, grita com jornalista (preferencialmente se for mulher), tira onda com sofrimento alheio, desmonta a pesquisa científica brasileira e veta ajuda financeira para estudantes e professores de escolas públicas que precisavam acessar internet para continuar estudando em plena pandemia.

Eu agradeço a Bolsonaro por mostrar a cara do Conselho Federal de Medicina e de milhares de médicos e médicas que ganharam muito dinheiro e fama vendendo um inexistente “tratamento precoce”; agradeço por ter exibido, via CPI da Covid-19, o imenso balcão de negócios que são os planos de saúde no Brasil, com direito a empresa (alô alô, Prevent Senior!) chamar óbito de alta hospitalar. Agradeço ao presidente por ter deixado ainda mais evidente os motivos pelos quais boa parte desta classe repudiou o Programa Mais Médicos: saúde boa é saúde paga, queridinha, e de preferência no conforto das capitais, em hospitais com “suíte Dubai”. Agradeço, não posso esquecer, por ele e seus ministros da saúde de competência restrita terem mostrado a mais gente para que serve um sistema de saúde universalizado e que chega a todas as regiões do país, o SUS.

Agradeço a Bolsonaro por escancarar ao mundo, em discursos na ONU ou outros púlpitos importantes do exterior, como nosso executivo é sustentado tantas vezes por mentiras, dados falsos ou distorcidos, publicados pela própria Secretaria de Comunicação do governo e por uma série de emissoras que costumam receber afagos do presidente.Atenção!O Intercept precisa de novos apoios para continuar seu trabalho. Ajude agora.

Falando nisso, agradeço DEMAIS a Bolsonaro por mostrar de maneira simples, quase como um power point feito por Deltan Dallagnol, as diversas fragilidades e covardias da imprensa brasileira: primeiro, que o “apartidarismo” evocado com muita pompa era conversa para boi dormir, vide a assessoria de imprensa que grandes veículos nacionais prestaram a Moro e a Força Tarefa do MPF do Paraná; depois, que o conceito de democracia de nossos veículos de comunicação era (ou é) o mais pobre possível: enquanto o presidente e seus bolsonaretes estavam descendo lapada em gays, pretos, mulheres, transexuais, etc., ainda assim eram tratados pelos jornalistas como fazendo parte do “campo democrático”. Mas quando Bolsonaro começou a tratar muito mal toda uma sorte de repórteres e, por exemplo, a jogar bananas para eles em cercadinhos; quando falou em tirar concessões públicas de televisões, aí a água bateu na bunda e finalmente Bolsonaro se tornou um radical.

Agradeço a Bolsonaro por destruir definitivamente dois enormes “mitos” (com o perdão da palavra). Primeiro: a ideia de que, após a redemocratização, o Brasil só veria o progresso ano após ano, em uma lógica bem linear. Toda uma geração quebrou a cara. Nossa democracia estava só começando a se fortalecer quando o capitão foi adotado pelo mercado, higienizado pela imprensa e Judiciário e assim eleito presidente. Homenageou Ustra? “Ah, mas ele tava só brincando”. Segundo: sua eleição foi primeiramente endossada justamente por quem tinha mais escolaridade, o que mostra evidentemente que o conhecimento formal não garante uma opinião política defensável. Mesmo agora, tem muita gente formada em excelentes universidades com o dedo coçando para voltar a eleger um incompetente. Mas quem não sabe votar é nordestino pobre, não é?

Por sinal, falando em redemocratização, agradeço a Bolsonaro por trazer de volta a memória do processo constituinte, aquele texto que brigamos tanto para ver nascer, onde estava nosso já citado e querido SUS, por exemplo. Foi bom lembrar como era legal dançar rock de protesto da Legião Urbana e ainda nos ensinou que não se dorme quando há silêncio na casa do inimigo.

Preciso realmente agradecer a Bolsonaro por nos mostrar, através de seu ministro Paulo Guedes, que doutorado em Chicago às vezes vale tanto quanto uma bicicleta para um peixe: primeiro, o homem sugeriu fazer reformas em vez de oferecer auxílio em dinheiro aos pobres no começo da pandemia; depois, jurou que nossa crise econômica aconteceria em V: cairíamos feio, mas nos levantaríamos rapidamente logo depois. Acredito que, para a Faria Lima, Guedes deve ter prometido fontes públicas de leite, offshore e mel (é a única coisa que explica a continuidade do tesão). Quero agradecer especialmente ao ministro por mostrar que o receituário neoliberal para fazer a economia crescer é uma tremendíssima balela.

Tem mais gratidão, Bolsonaro: quero agradecer sinceramente ao presidente por mostrar para muito mais gente a qualidade de boa parte da classe política do nosso país: os que defendem sua permanência insistem em errar sem qualquer consequência, enquanto vários dos que opõem não agem mais efetivamente para enfraquecê-lo (o PDT e o PSB apoiando o calote dos precatórios que o digam).

Agradeço a Bolsonaro por me mostrar que vários amigos e muitos colegas de profissão, autodenominados progressistas, são na realidade ultraconservadores, apoiam a extrema direita e não fazem nada para uma transformação social no Brasil, na direção da dignidade coletiva e da diminuição do abismo social. Deles, tenho mantido uma saudável distância.

Agradeço a Bolsonaro por expor milhões de pessoas que estavam distantes do debate político e se sentiram convocadas para um ativismo muito particular: o da retaliação e destituição de uma eleição (e de um partido) e o desapreço por programas e pautas voltadas às políticas públicas que favoreciam o coletivo e o social. Por tirar a máscara dos isentões, dos que se faziam de alheios, desligados.

Agradeço a Bolsonaro por fazer com que conhecêssemos melhor os rostos do STF, do Senado, por nos mostrar que política é assunto de todas e todos; por entendermos melhor o que foram os crimes de Brilhante Ustra no período militar. Agradeço a Bolsonaro por evidenciar a imensa instrumentalização de Jesus Cristo, um nome mais fácil que nunca nos lábios de vendedores de armas, grileiros, lobistas e pastores que preferem ver uma criança estuprada parir um bebê a respeitar a própria legislação.

Agradeço a Bolsonaro por nos mostrar que manter o público engajado e alienado é mais importante e eficaz do que governar de verdade. Agradeço por ter revelado que muita gente que bota as mãos sobre o peito e manda um “gratidão” está conectada ao espírito da Deusa Interior, mas não à família em situação de insegurança alimentar da própria diarista. Esse povo gratiluz, que batiza o filho no Rio Solimões, coloca colarzinho de âmbar no bebê e, depois que ele dorme, vai ler os livros de Olavo de Carvalho.

Finalmente, quero agradecer a Bolsonaro e a seus filhos muito bem tratados pelo dinheiro público, acostumados a comer picanhas milionárias e a comprar mansões que tecnicamente não cabem em seus orçamentos, por mostrarem como é possível se escandalizar vendo uma porção de camarão em um espaço do MTST, mas nunca fazer o mesmo quando pessoas muito pobres apareceram catando ossos para comer.

Obrigada, Bolsonaro.

Participam deste texto: Lia da Conceição, Gilberto Garcia, João Feitosa, Ricardo Sabóia, Pedro Andrade, Maria Eduarda Rocha, Lucila Sciotti, Irecê Nabuco de Araújo, Gilvan Barreto, Moacir dos Anjos, João Henrique de Freitas Alves, Fernanda Rocha, Mardônio Cavalcanti, Mateus Yuri, Audry Silva, Neon Cunha, Clebio Junior. Saravá pelo obrigada coletivo.

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