Por Miguel do Rosário, O Cafezinhho –
Pobre Brasil.
Hoje o Valor, noticiou – sem destaque, claro, porque essa não é uma notícia que interessa à mídia corporativa, hoje empenhada em consolidar o golpe – uma notícia terrível, da qual reproduzo um trecho:
Com crise, base da pirâmide cresce e volta aos níveis de 2011
As classes D e E ganharam 4,3 milhões de famílias nos últimos dois anos e voltaram a representar 56,5% do total de domicílios do país, nível próximo do registrado em 2011, 57,4%. A proporção chegou a 51,4% em 2014, a menor observada durante o processo de mobilidade social que começou em 2003, quando 70,2% estavam na chamada base da pirâmide.
Reparem bem. As classes D e E representavam 70% da população brasileira em 2003. Caíram para 51% ao final de 2014, após três gestões petistas.
Esse foi, claro, o grande crime do PT.
A partir de 2015, quando o golpe (ou seja, a aliança entre mídia e aparelho jurídico do Estado) assume o poder de fato no país, as coisas começam a ser revertidas rapida e brutalmente.
Mas isso parece não interessar a grande imprensa nem à classe média. Alguns infelizes, mesmo desempregados por causa da Lava Jato, continuam adorando o monstro que devora suas vidas, atribuindo o mal ao PT, à corrupção, ao Lula, ao filho de Lula, ou seja, repetindo obedientemente tudo que a Globo lhes incute, direta ou indiretamente, através de sua campanha de mentiras.
Alguns comentaristas me perguntam, sinceramente perplexos, se era melhor não ter Lava Jato e deixar as empresas e corruptos impunes.
As pessoas parecem ter naturalizado uma bizarria: de que a Lava Jato substituiu todo o aparelho democrático estatal de combate à corrupção. Nessa visão, a Lava Jato deixa de ser uma operação específica, liderada por um juiz e um grupo de procuradores de Curitiba, provincianos, reacionários e irresponsáveis, e se torna uma instituição de Estado independente.
É preciso explicar às pessoas que é possível combater a corrupção sem Lava Jato, sem golpe, sem destruir nenhuma empresa, sem abusar de prisões preventivas, sem delação premiada.
Não vai ser igual a Lava Jato, claro. Não será tão espetacular. Será uma luta contra a corrupção mais discreta, mais eficiente, mais séria.
A Lava Jato não combate a corrupção e sim favorece profundamente a corrupção no país, porque produziu caos político e econômico, e se associou à campanha midiática para deslegitimar a atividade política. Esses são fatores que aumentam a corrupção. Alguém às vezes me fala que empresas e políticos pensarão agora duas vezes antes de corromperem ou serem corrompidos. Que ingenuidade! Por caso, Geddel Vieira Lima, o ministro que tentou pressionar seu colega de ministério, Marcelo Calero, a aprovar a construção de um prédio onde detinha um apartamento, sentiu-se intimidado pela Lava Jato?
Por acaso a corrupção caiu na Itália, após as operações Mãos Limpas? Não. Não caiu. Aumentou. Aconteceu igual ao Brasil. O que é o governo Temer senão a fina flor da corrupção política brasileira?
O governo Dilma tinha corrupção? Sim. Tinha problemas diversos? Tinha. Mas Dilma era exatamente o principal fator de resistência ética do governo. Ao derrubarem-na e promoverem um expurgo de qualquer servidor progressista (até mesmo um garçom do Planalto foi demitido por suspeitas de simpatias progressistas), o que fez Temer senão reunir a nata da escória política nacional? Esse é o resultado, portanto, da Lava Jato: um aumento brutal da corrupção no governo.
E agora, o país, mais uma vez, é paralisado para assistir, embasbacado, a prisão de Eike Batista, num espetáculo notoriamente armado com a Globo. Eike Batista volta ao Brasil pronto para delatar, quem? Se quiser sair rápido da cadeia, Eike provavelmente terá de acusar Lula e PT, claro.
Aliás, todas as declarações de Eike (à Globo, claro, que inclusive botou um repórter para viajar a seu lado) tem sido no sentido de que irá aderir alegremente ao golpe. Francamente, eu não o culpo por isso, porque a violência da Lava Jato e da Globo não tem limites. Teori que o diga. A Lava Jato, se não conseguir o que quer, vai atrás da família da pessoa, destrói sua vida, sua empresa. O que foi a condenação do almirante Otto a mais de 40 anos de prisão senão uma vingança de Moro porque o almirante se recusou a fazer uma delação mentirosa contra o PT e Lula?
Por que Marcelo Odebrecht ficou preso durante tanto tempo enquanto os mais notórios corruptos foram rapidamente soltos? Ora, porque ele tinha se recusado, até o momento, em “colaborar” com os procuradores. O que isso significa? Que ele não aceitara fazer o jogo da Lava Jato.
Então a Lava Jato usou o pai de Marcelo. Emilio Odebrecht foi ameaçado e não resistiu. Como Sergio Moro não conseguiu dobrar Marcelo Odebrecht com uma prisão preventiva medieval, de tempo ilimitado, a Lava Jato apelou para a destruição da Odebrecht no Brasil e no mundo. Procuradores brasileiros viajaram aos EUA para entregar informações sensíveis da companhia para o Departamento de Justiça. Foi aí que Emilio Odebrecht e talvez o próprio Marcelo entenderam o que a Lava Jato era capaz para conseguir algum tipo de delação envolvendo a classe política, ou seja, reforçando toda a narrativa do golpe (mesmo que a delação da Odebrecht não envolva diretamente Lula e Dilma, ela poderá servir para os objetivos do golpe de controlar o governo).
A política brasileira ficou insuportável, porque todos entram – inclusive a esquerda – nas ondas de linchamento. É hora de linchar Eike? Então todos vamos linchar Eike. Globo, Veja, Istoé, redes sociais, blogs, mídia alternativa. Todo mundo competindo quem pinta um retrato mais satânico de Eike Batista.
A direita espalha fotos de Eike ao lado de Lula. A esquerda espalha fotos de Eike ao lado de Aécio.
O Brasil precisa discutir seus graves problemas de infra-estrutura. As cidades precisam de metrôs, de VLTs, de trens. Precisamos discutir como superar a crise econômica e como queremos nos inserir no mercado global. Ao invés disso, a agenda política nacional é inteiramente dominada por uma pauta definida por uma espécie de centro unificado do golpe, que define o único assunto que poderá ser debatido no país durante os próximos dias. Todos os dias, dois ou três assuntos dominam inteiramente a mídia nacional. Ninguém pode falar de outra coisa.
Enquanto a mídia e a Lava Jato cegam os olhos da opinião pública com notícias ameaçadoras sobre a “mega-delação” da Odebrecht, e com detalhes sobre onde ficará preso Eike Batista, o governo anuncia que a Eletrobrás pretende reduzir sua força de trabalho de 23 mil para 12 mil funcionários.
A notícia está no Valor, jornal que poucos lêem, e também sem destaque.
É assim o governo que nasce do golpe: no momento em que o maior problema do país volta a ser o desemprego, suas únicas medidas são anunciar demissões em massa. Para fazer isso, repare bem!, a Eletrobrás terá que desembolsar mais de R$ 2,5 bilhões, por causa dos custos trabalhistas. Ou seja, o governo gastará o pouco dinheiro que tem em caixa para investir em… demissão.
É uma orquestra armada em seus mínimos detalhes. Enquanto o público é distraído com espetáculos de justiça bárbara, saciando seus mais baixos instintos com as agruras de ex-poderosos, o governo continua vendendo, freneticamente, patrimônio público, demitindo em massa, provocando desemprego.
A revolta popular é contida por esses espetáculos. Afinal, os políticos e empresários presos recebem, no lombo, toda a carga de culpa pela crise. Os culpados não são mais a incompetência do ministro da Fazenda e dos técnicos do Banco Central, nem a irresponsabilidade dos operadores da Lava Jato, nem a codícia de alguns especuladores, tampouco a desonestidade brutal da imprensa corporativa. O culpado é Eike Batista, claro! Ou então, Lula!
Ainda sobre a dúvida de alguns leitores, coxinhas ou não, sobre como combater a corrupção sem destruir as empresas, vale lembrar o exemplo alemão. Após a II Guerra, os alemães não destruíram nenhuma de suas grandes empresas, apesar delas terem se envolvido em escabrosos casos de corrupção, além de sua conivência repugnante com o regime nazista que matou milhões. As empresas foram preservadas porque os alemães entenderam que elas eram um patrimônio nacional, e um ponto de apoio importante para o desenvolvimento tecnológico e industrial do país.
Agora, neste sentido, também devemos culpar a mídia, que desde o início da operação Lava Jato, passou a chamar todas as grandes indústrias de construção civil do país simplesmente de “empresas da Lava Jato”. Elas foram completamente despersonalizadas, numa campanha de destruição de imagem inédita na história do empresariado brasileiro.
Os capitalistas brasileiros precisam entender que democracia e pluralidade midiática são importantes para sua segurança. Golpe de Estado, regime autoritário, monopólio midiático são fatores que atravancam o desenvolvimento, como estamos vendo.
Hoje a presidente do STF, Carmen Lucia, decidiu homologar a delação da Odebrecht. Há um grande suspense no ar em relação a isso. Alguns militantes antigolpe acreditam que essa delação produza uma confusão dentro da Lava Jato, porque ela não corroboraria a tese dos procuradores antipetistas, e sim jogaria a lama para o lado do governo Temer, que poderia inclusive não resistir e cair. A mídia assiste a tudo de camarote, porque ela ganha de qualquer jeito, com Temer ou sem Temer, visto que o poder, de fato, está nas mãos da Procuradoria Geral da República, do STF e da Globo.
Lucia também determinou o sigilo da homologação, o que é muito conveniente para o consórcio golpista, que mais uma vez terá condições de vazar seletivamente o que desejar. O governo Temer, por sua vez, permanece o que é: uma administração inerte, vazia, ocupada apenas em satisfazer o mais rápido possível a cobiça das elites mais egoístas e antinacionais do mundo.
O consórcio entre Globo, PGR e STF exerce o poder de fato no país. A gestão deles, como se vê, é um desastre, porque eles não entendem nada de economia, de emprego, de desenvolvimento, de soberania. Seu único talento é para destruir, prender, acusar. Construir um país requer estabelecer compromissos delicados entre o capital e o trabalho, entender a importância de cuidar da população mais pobre, incentivar a educação, a tecnologia, a pesquisa.
Em Davos, o procurador-geral da república, Rodrigo Janot, portou-se como um chefe de Estado, o que, por si, já demonstra a incrível anarquia política na qual mergulhou o país após o golpe. Em entrevista, Janot disse que a Lava Jato é “pró-mercado”, o que me pareceu a declaração mais esquizofrênica, cínica e bizarra, que eu já ouvi em muito tempo. A Lava Jato foi a operação mais demolidoramente anti-mercado que alguém poderia conceber. Lembro-me que, num determinado momento, eu escrevi um post chamando a Lava Jato – sarcasticamente, é claro – de “comunista”, porque ela surfou, de fato, junto com a mídia, nesse preconceito antiempresário bem típico de um país dominado por burocratas e rentistas, como é o Brasil há séculos. A mídia manipulou muito bem este sentimento.
A esquerda brasileira não tinha instrumentos, nem de longe, para lutar contra a Lava Jato, porque o seu nível de sofisticação foi avançadíssimo. Se você tem todos os instrumentos de violência e espionagem do Estado em suas mãos e nenhum escrúpulo em relação às consequências econômicas e políticas de seus atos, além de um blindagem midiática absoluta, no Brasil e lá fora, você pode fazer o que quiser. A esquerda brasileira, que nunca possuiu um centro de inteligência, nem nunca jamais pensou em construí-lo enquanto esteve no poder, não soube reagir às maquinações jurídicas e midiáticas do golpe.
Lula, solitariamente, através de seus advogados no Brasil e Londres, protagoniza a luta para salvar não apenas a si mesmo e a sua família, mas a própria democracia brasileira. Se isso traz uma grande injustiça, não se pode negar que é resultado da própria inércia de Lula, que não foi apenas presidente por duas vezes, como sempre foi, durante o mandato de sua sucessora, a figura mais importante de seu partido. Lula deveria ter ouvido o que tantos analistas progressistas denunciavam, quase desesperadamente, ao longo de toda a era petista: que a mídia estava desossando completamente o governo, o partido, a esquerda em geral, e que era preciso haver reação política à altura. A coisa explodiu em 2013. Ali ficou patente que a água da alienação política, do fascismo, do ódio à esquerda, depois de anos de fogo midiático, havia finalmente entrado em ebulição. As pesquisas eram claras: a maioria dos manifestantes de 2013 eram favoráveis a Joaquim Barbosa, o justiceiro da Globo daquela época. Mesmo assim, nada foi feito. A inapetência política do governo atiçou a fúria da mídia, animada agora pelo surgimento de movimentos de classe média profundamente agressivos e conservadores. O auge da estupidez política veio após a vitória de outubro de 2014. No dia seguinte à vitória, o governo, num gesto de suicídio político que deverá, por muitas décadas, ser objeto de estudo, depõe todas as suas armas e decide caminhar nu e desarmado pelo campo inimigo. Pior, contrata, para administrar a economia nacional, um oficial do exército adversário, o qual dá início imediatamente a uma política acelerada de destruição da reputação política que o governo havia conseguido reconstruir durante o processo eleitoral.
Ainda é tempo de reagir. Sempre é tempo de reagir.