Por Carlos Drummond, publicado em Carta Capital –
A disputa sobre o superávit primário revela como o País dá as costas à profunda revisão das diretrizes econômicas no mundo avançado
Desconhecedor, ao que tudo indica, da revisão profunda dos parâmetros de política econômica iniciada em 2008 no mundo avançado, o Brasil assiste à guerra pelas metas de superávit fiscal entre bancos, mídia, oposição e governo, este em posição nem sempre muito clara. O País preocupa-se em lidar com as pressões pela obtenção de um superávit elevado, mesmo com a economia estagnada, e perde a oportunidade de aproveitar a reformulação dos cânones financeiros para reforçar políticas econômicas voltadas ao crescimento com redução da desigualdade. O superávit é o dinheiro usado para pagar os juros da dívida pública e, quanto maior for, menos o governo faz investimentos, considerados despesas.
A autocrítica dos erros da economia e das exigências em matéria de política fiscal está disponível na internet, em textos de expoentes do Fundo Monetário Internacional, do Banco de Compensações Internacionais, do Citigroup e de universidades de primeira linha, entre outros. Entretanto, os participantes da batalha pela meta fiscal parecem desconhecê-los. “O mundo avançou, mas o pensamento econômico e financeiro dominante local parece ter sofrido uma regressão. Antigamente, as notícias chegavam ao Brasil por navio, hoje parecem vir em carro de boi”, compara o economista Luiz Gonzaga Belluzzo.
Uma das mudanças de posição mais importantes foi protagonizada pelo economista-chefe do FMI, Olivier Blanchard, autor, em 2008, de um famoso artigo intitulado The state of macro is good (A situação da macroeconomia é boa), publicado pouco antes do início da crise. Em setembro deste ano, divulgou um texto na direção oposta, Where danger lurks (Onde o perigo se esconde), com críticas ao simplismo dos economistas e aos erros de condução da economia. O artigo é a mais recente elaboração do autor sobre o assunto e configura a admissão do fracasso daqueles que deveriam ser os guardiões da estabilidade do capitalismo mundial. “A crise deixou claro que a visão crescentemente benigna das flutuações econômicas no produto e no emprego, dominante até a crise financeira global de 2008, estava errada e que há necessidade de uma avaliação profunda. As técnicas usadas por nós, mais apropriadas a um mundo no qual as flutuações econômicas seriam regulares e autocorrigíveis, afetaram o nosso pensamento em profundidade e nem sempre de modo consciente.”
A principal lição da crise, para o economista-chefe do FMI, é que “nós estivemos perigosamente próximos dos ‘cantos escuros’, situações nas quais a economia pode falhar. Não percebemos isso, pensávamos estar distantes desses cantos e pudemos, na maior parte do tempo, ignorá-los”. Guiada por incompreensões e dogmatismos, “a política econômica, em especial a política monetária, assumiu um elemento de magia negra”.
O reposicionamento do economista-chefe do FMI não é um fato isolado, como mostra o levantamento feito por Cornel Ban, professor da Universidade de Boston e codiretor da Global Economic Governance Initiative, em estudo dos principais relatórios do FMI, o World Economic Outlook e o Global Fiscal Monitor, publicados de 2009 a 2013. Ban concluiu que “a doutrina de política fiscal do FMI experimentou um grande derretimento e os Estados membros bem informados podem usar isso em seu benefício”. É uma pena o Brasil não estar atento a esta observação do professor. No seu estudo, ele constatou uma evolução clara do organismo em relação aos principais objetivos da política fiscal, às opções básicas para países com ou sem espaço fiscal, ao ritmo da consolidação fiscal e à composição do estímulo e dessa consolidação. As conclusões do trabalho estão no texto Is there more room to negociate with the IMF on fiscal policy?, publicado neste mês.
O momento definidor da evolução do FMI foi a publicação, em dezembro de 2008, da nota SPN/08/01, intitulada Policy for the crisis, assinada por Antonio Spilimbergo, Steve Symansky, Carlo Cottarelli e o próprio Olivier Blanchard. O documento lança as bases para a política macroeconômica durante as recessões: “um estímulo fiscal amplo, diversificado e sustentável coordenado por meio de países com um compromisso de aumentá-lo se a crise se aprofundar”. Em outras palavras, dado o colapso da demanda privada, os Estados deveriam não só deixar funcionar os estabilizadores contracíclicos automáticos (mecanismos institucionais a exemplo do seguro-desemprego, da previdência social e da tributação progressiva sobre rendimentos, que dão sustentação à renda nacional em conjunturas econômicas adversas), mas aumentar os investimentos públicos e expandir o alcance das transferências de renda àqueles mais propensos a gastar, os desempregados e as famílias pobres. Contra a linha política do FMI anterior a 2008, os autores reforçam o papel dos investimentos públicos. Os autores também descartaram a recomendação do Fundo outrora em moda, de confiança exclusiva em uma recuperação baseada em uma política monetária ativa e em exportações.
“Há necessidade de maior pluralismo e humildade na profissão dos economistas. Eles precisam prestar mais atenção aos pensadores heterodoxos, não devem assumir modelos matemáticos tão literalmente e, o mais importante, têm de lembrar que no coração da disciplina está o bem-estar humano”, destacou Jaime Caruana, diretor-geral do Bank for Internacional Settlements, o BIS, considerado o banco central dos bancos centrais, em palestra durante o Internacional Finance Forum 2014 Annual Global Conference, realizado neste mês em Pequim. Ele sublinhou, no texto Debt trouble comes in threes?, que “o sistema monetário pós-Bretton Woods não providenciou uma âncora efetiva para a estabilidade monetária e financeira, nem teve a capacidade de direcionar a expansão do capital financeiro às necessidades da economia real”.
Willem Buiter, economista-chefe do Citibank e ex-integrante do comitê de política monetária do Banco da Inglaterra, mostra o quanto avançou a crítica aos paradigmas até recentemente incensados no resto do mundo e ainda prestigiados no Brasil. “A teoria macroeconômica não ajudou a prever a crise, nem a entendê-la ou a encontrar soluções. Não apenas impossibilitou a resposta às questões-chave sobre insolvência e iliquidez, impediu até mesmo a sua formulação”, analisa no texto The unfortunate uselessness of most ‘state of the art’ academic monetary economics (A desafortunada inutilidade da maior parte do ‘estado da arte’ da teoria econômica monetária acadêmica)
“Quase todas as inovações teóricas macroeconômicas do mainstream desde a década de 1970 (a revolução das expectativas racionais neoclássicas associada a Robert E. Lucas Jr., Edward Prescott, Thomas Sargent, Robert Barro e outros, e a teorização neo-keynesiana de Michael Woodford, entre vários economistas), tornaram-se não mais que distrações autorreferenciais e introvertidas, na melhor das hipóteses. A pesquisa tendeu a ser motivada mais pela sua lógica interna, por capital intelectual naufragado e jogos estéticos de programas de pesquisa estabelecidos do que por um desejo vigoroso de entender como a economia funciona”, aponta Buiter. “O fracasso da hipótese dos mercados eficientes, suposição de que os preços dos ativos agregam e refletem plenamente toda informação fundamental relevante e assim proveem os sinais apropriados para as decisões sobre alocação de recursos, tornou-se óbvio para praticamente todos aqueles com habilidades cognitivas não desencaminhadas pela moderna educação oferecida pelos Ph.Ds. americanos e ingleses. Mas a maioria dos economistas continuou a engolir esse anzol, com a linha e a chumbada, apesar de existirem influentes advogados da razão como James Tobin, Robert Shiller, George Akerlof, Hyman Minsky, Joseph Stiglitz e abordagens behavioristas das finanças.”
Restam esperanças, no entanto. “Agora que estamos mais atentos às não linearidades e aos seus perigos, devemos explorá-las teórica e empiricamente e em todo tipo de modelo. Isso tem acontecido e, a julgar pelo fluxo de working papers elaborados desde o início da crise, ocorre em grande escala. Finanças e macroeconomia, em especial, estão se tornando muito mais integradas, o que é uma notícia muito boa”, avalia Blanchard. Enquanto isso, no Brasil…
*Reportagem publicada originalmente na edição 828 de CartaCapital, com o título “Catedral em reforma”