Olha o Gelaaaado!

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Outra viagem ao passado nas asas da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista. Nesta jornada, o cronista nos leva à vida de criança, dando água na boca ao lembrar do sorvete gostoso da nossa infância trazido no carrinho pelo Gelaaaado!

“Eu sei que o verão está longe. Mas as férias escolares, não. Por isso, decidi falar de uma personagem que aparecia todo verão pelas ruas do Engenho Novo, bairro da Zona Norte do Rio onde passei minha adolescência. Não é a primeira vez que falo dele, e talvez não seja a última. Todos nós o chamávamos de “Gelado”, pois era assim que ele anunciava os seus produtos.




Ele subia a vila ao lado do prédio onde eu morava empurrando um carrinho de sorvetes e apregoando: “Gelaaaaado, olha o Gelaaaaado!”. Era assim mesmo, com o “a” bem longo, ritmado. Além de picolés, ele vendia balas e chicletes.


Ele era um homem branco, provavelmente nordestino, de seus mais de trinta anos. Tinha o pescoço vermelho de trabalhar no sol. Eu estranhava o carrinho de madeira dele, não só por ser muito limpo. Como pessoa desorganizada que sou, eu costumo prestar muita atenção na organização das outras pessoas.

Enfim, Gelado não carregava uma caixa de isopor nos ombros como se via na praia nem empurrava um paramentado carrinho de fibra de vidro com guarda-sol e tudo como os da Kibon de antigamente. O carrinho dele, azul ou verde que fosse, era único.


A gente tentava pegar um picolé sem pagar, tentava o enrolar na malandragem, mas ele sempre fechava a portinhola do carrinho a tempo. o efeito era aquela cara de tacho, mais ou menos quando se fica quando a porta de ônibus fecha na nossa cara justamente no momento em que nos preparávamos para dar calote. E ele ria, ria baixo, em vez de brigar com a gente pela nossa ousadia.


Gelado saía da casca da árvore que nem cigarra no verão? Acho que sim. Ele era que nem chuva, que nem férias, que nem calor infernal, que nem trovoada, que nem jogar conversa fora, que nem céu coalhado de pipas, que nem blecaute, que nem futebol em ladeira ou em quintal, que nem filme dos Trapalhões, que nem cheirinho de jasmim de certos jardins de casa de vó, em noite de céu azul de anil. Enfim, cedo ou tarde ele acontecia.


Podem falar do vassoureiro, com seu gogó de ouro, do amolador de facas, com sua flauta; do carro da pamonha e do carro do ovo, com seus alto-falantes; do carro do gás, com seu jingle pop, que em São Paulo foi feito por Hélio Ziskind, músico muito respeitado por aquelas bandas. Sim, eles fazem parte do figurino sonoro de gente que anuncia seus produtos ao mundo com seus pregões.


Não faço questão de sabores do passado: não quero o retorno de raspadinha de groselha Maceió nem do sacolé de banana do Rio nem de nenhum frappé de frutas vermelhas ou coisa que o valha. É tudo água com açúcar, só pode ser. Mas ninguém, ninguém era como o Gelado, talvez nem mesmo naqueles tempos de antanho. Ele era de uma educação difícil de encontrar. E é disso que eu sinto falta.


Quem sabe ele não esteja escondido sob a casca de uma árvore até a chegada do verão? Irei prestar bastante atenção no que as cigarras têm a dizer. Isto é, vou me mandar pro Engenho Novo.
Nota: Pelo que sei, usa-se em espanhol a palavra “helado” para designar o nosso sorvete. Em italiano, é “gelato”. O povo de fato é um inventa-línguas? Ou o nosso Gelado da história já almejava o mercado internacional?”

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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