Olhando para a rua para não perder a parada em “Retratos fantasmas” – Por Cesar Castanha

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O que conduz o olhar do cineasta para o centro da cidade é uma preocupação com a rede política e econômica que toma a sua parte nesse processo de transformação da paisagem

POR CESAR CASTANHA, compartilhado da Revista Fórum




Olhando para a rua para não perder a parada em “Retratos fantasmas” – Por Cesar Castanha
Recife. Divulgação

O centro da cidade do Recife entrou no meu cotidiano logo que me mudei de volta para a cidade com 7 anos. Estudei inicialmente numa escola na Rua do Príncipe, paralela da Avenida Conde da Boa Vista, uma das protagonistas do filme “Retratos fantasmas” (dir. Kleber Mendonça Filho, 2023).

Acontece, no entanto, que só fui me dar conta do centro como um organismo próprio, um lugar de práticas específicas, paisagem urbana de fato, dois anos depois, quando passei a acompanhar minha mãe ao seu trabalho na Rua dos Coelhos, toda sexta-feira.

A cada semana, nesse dia, eu e minha mãe descíamos do ônibus na parada do Shopping Boa Vista e caminhávamos até os Coelhos pela Gervásio Pires, passando pelo Pátio da Santa Cruz, que na época havia sido locação do filme “Lisbela e o prisioneiro” (dir. Guel Arraes, 2003). Eu vi o filme com meus pais no Teatro do Parque, e minha mãe me mostrava os seus cenários nesse caminho sempre repetido.

Não sei se desde aquele momento ou depois dele, mas eu criei o hábito de antecipar a parada do Shopping Boa Vista com a fachada de uma loja de colchões que fica próxima à parada anterior. Eu usei esse ponto de referência por muitos anos, até quando ele se tornou completamente desnecessário seja porque eu já tinha incorporado o trajeto ou porque a expansão do shopping para o outro lado da avenida justificou a criação de uma passarela que chama bastante atenção para si mesma. Ainda assim, eu imagino essa fachada como um ponto de referência, mesmo sem buscar por ela. É possível que ela já nem exista mais, mas penso que, se eu procurar por ela e não achar, é provável que eu perca a parada.

A maior parte do que aparece como o centro da cidade do Recife em “Retratos fantasmas” é anterior a tudo o que estou relatando aqui. Não vivi essa era de ouro dos cinemas de rua no centro da cidade. Frequentei na infância, como muitos outros da minha geração, apenas o São Luiz, o Teatro do Parque e o Cine-Teatro Apolo e não registro nenhuma delas em um lugar de nostalgia, como salas do passado, embora seja significativo que no momento em que escrevo apenas uma dessas esteja em funcionamento como sala de cinema.

Seria um equívoco, porém, entender o filme como sugestão de uma nostalgia restauradora. Não há indicação narrativa, documental ou formal de que o centro dos grandes cinemas representava uma cidade melhor ou uma experiência superior de cinema. Existe um registro de saudade, é evidente, mas um que se coloca numa chave de nostalgia reflexiva (distinção de Svetlana Boym), que não se dá em um desejo de trazer de volta o passado ou de recuperação de outra cidade, mas de um projeto de memória que se inscreve sempre como uma vivência pessoal-subjetiva, ainda que seja formulada para o outro com frequência no trabalho da literatura ou, nesse caso, do audiovisual.

O diretor Kleber Mendonça Filho torna isso evidente ao criar um primeiro ato para o filme que funciona como um tipo de carta de intenção antes de levar a investigação para o centro da cidade e os seus cinemas. Ele começa o filme na casa da sua mãe e tratando do seu próprio cinema.

Joselice Jucá, mãe do diretor, foi uma historiadora que, após um divórcio, comprou um apartamento em Setúbal e fez duas vezes significativas e bastante criativas transformações arquitetônicas naquele espaço. Tem uma constatação afirmativa nessa sequência de que a impermanência das paisagens não incomoda Kleber em absoluto, no que a transformação do espaço urbano é resultado bem-vindo da inscrição humana, engajada, nesses espaços.

O que conduz o olhar do cineasta para o centro da cidade, portanto, não é um desejo de manutenção – filmes realizados nos últimos 20 anos são inclusive frequentemente usados para pensar a continuidade de uma riqueza estética desse lugar –, mas sim uma preocupação (muito sofisticada na sua articulação) com a rede política e econômica que toma a sua parte nesse processo de transformação da paisagem.

Assim, mais até do que a transformação econômica e arquitetônica da cidade, está em cena um registro do envelhecimento. O cineasta articula através do filme um assombro – e essa é a palavra – de se ver em uma posição de sua própria vida de observar o seu vasto material de filmagem e descobrir fantasmas.

São múltiplas as dimensões fantasmáticas do filme. É interesse, por exemplo, como Kleber alterna o registro da permanência em “Aquarius” (o edifício que permanece, a mulher que permanece, a escolha de excluir as torres gêmeas da vista recifense) por um mais complexo, de uma impermanência na paisagem que opera um pouco como palimpsesto, em que outras inscrições arquitetônicas da cidade são cobertas por novas superfícies, mas que se revelam na composição dessas novas superfícies pelo próprio trabalho arqueológico do filme.

Em outra dessas dimensões fantasmáticas, o filme aciona seu arquivo audiovisual para lidar com a realização da mortalidade. Essa realização fundamenta “Retratos fantasmas” desde o que podemos considerar a sua essência afetiva, um filme dedicado à saudade da mãe historiadora, mas reaparece em dois personagens fundamentais.

Um deles é o projecionista Alexandre, um operador de imagens oculto numa cabine de uma sala de cinema que não existe mais. Na construção desse personagem, o filme evoca de maneira bastante sofisticada um momento, hoje mais raro, do cinema de projeção analógica como uma arte de manuseio de fantasmas. Alexandre não é um fiel da experiência sagrada como alguns cinéfilos relatam ser a da sala de cinema, ele é um trabalhador da projeção, conduzindo pragmaticamente a dança fantasmática sobre a tela que reitera algum incômodo de habitar um prédio assombrado, deitando-se sem camisa no chão frio para fugir do calor da sala; entregando cópias censuradas em batidas da ditadura satisfeito o bastante de poder ir para casa mais cedo; e até mesmo fugindo desses fantasmas audiovisuais quando eles se tornam insuportáveis, como ao fim do longo período em que “O poderoso chefão” (dir. Francis Ford Coppola, 1972) foi exibido por ele.

O outro personagem fundamental na realização da mortalidade pelo filme é o cão Nico, que aparece no primeiro ato. Habitante da casa ao lado algo abandonado nos fins de semana, os latidos de Nico são gravados em diversos filmes de Kleber, sendo até mesmo propositalmente incorporados ao tecido audiovisual de “O som ao redor” (2012), seu primeiro longa-metragem de ficção. Ao ouvir o latido de Nico depois de sua morte, porque o filme em questão era visto pelos vizinhos em exibição televisiva, o diretor dá-se conta de ter filmado um fantasma. Eu aprecio particularmente a maneira como Kleber se dirige à existência de Nico para desdobrar esse fio que liga a mortalidade e o cinema (sua mãe aparece antes, mas tem outra circunstância narrativa e formal de aparecimento, mais como criadora do espaço que como sua habitante passageira). Como os animais de estimação geralmente vivem menos, trabalhar com imagens de quando estavam vivos se torna um marco temporal de nossa própria existência. A descoberta de um mundo sem Nico antecipa a percepção de um mundo sem nós mesmos e da existência como ruínas, como casas assombradas, que espreita os lugares que habitamos, aguardando a nossa morte.

Não sei se isso foi, na minha própria experiência com “Retratos fantasmas”, atenuado ou acentuado pelo ato final, em que diversas imagens de edições do “Janela Internacional de Cinema do Recife”, festival de que me tornei assíduo espectador a partir de 2013, são trabalhadas na representação do Cinema São Luiz, aquele que ainda permanece dos chamados “cinemas de rua” (embora com falta de mobilização pelo governo do estado de Pernambuco para a sua devida manutenção).

Nesse ato, eu me deparei com imagens de sessões de cinema conhecidas, em que eu podia identificar minha presença tanto pelos filmes em exibição quanto por reconhecer as figuras em cena e suas posições dentro da sala e na Rua da Aurora. Buscar-me na imagem foi um exercício predominante desse terceiro ato. Pensando na maneira como ele articula um “hoje”, parece um gesto confortável, a reafirmação de que eu mesmo e os meus estamos ainda presentes. Podemos perder uma ou outra parada, mas permanecemos em uma cidade em mudança. Kleber é feliz ao encerrar o filme não com essas imagens de poucos fantasmas, mas com uma outra, de invisibilidades e visibilidades intermitentes, de uma cidade e seus habitantes que desaparecem sem controle para serem revelados ocasionalmente. E “Retratos fantasmas” é justamente uma ocasional, bela, inteligente e sofisticada revelação da cidade do Recife.

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