Por Ivan Longo, compartilhado da Revista Fórum –
“Não toque em meu companheiro”, novo documentário de Maria Augusta Ramos que conta a história de trabalhadores da Caixa que foram demitidos injustamente no governo Collor, vem em um momento de perseguição e retrocessos em que o olhar para a história de luta e solidariedade do passado se faz mais do que necessário
Se ao terminar de assistir documentário “O Processo” (2018), de Maria Augusta Ramos, somos confrontados com amarga sensação da injustiça ao nos depararmos com os bastidores da farsa que foi o impeachment contra a ex-presidenta Dilma Rousseff, o mais novo filme da diretora, “Não toque em meu companheiro”, nos reacende a esperança de que a união e a solidariedade são importantes ferramentas para contornar a fissura democrática que nosso país vive e que não é de hoje.
Exibido no dia 7 de fevereiro, em São Paulo, durante o Inspira Fenae/Apcef 2020, um evento de trabalhadores da Caixa que reúne centenas de pessoas de todo o país, “Não toque em meu companheiro” resgata a história até então pouco explorada de 110 empregados do banco público que foram demitidos injustamente durante o governo de Fernando Collor, em 1991, por se mobilizarem em prol de seus direitos, e dá destaque à maneira que esses trabalhadores encontraram para se segurarem diante do golpe e, ao mesmo tempo, fazerem prevalecer seus direitos.
Fiel ao seu estilo cinematográfico, isto é, sem utilizar grandes efeitos, trilhas sonoras ou entrevistas, Maria Augusta Ramos proporciona, através de um olhar delicado, o contato com a intimidade entre aqueles trabalhadores que conseguiram reverter a demissão após mais de um ano de união e mobilização. No documentário, que mescla cenas antigas do movimento grevista bancário, pronunciamentos de Fernando Collor e manchetes de jornais da época, os trabalhadores demitidos aparecem nos dias atuais, mais de 30 anos depois do fatídico episódio, reunidos em São Paulo, Belo Horizonte e Londrina, cidades onde ocorreram as demissões.
São verdadeiros reencontros de amigos que lembram de como se organizaram para superar aquele momento. E são exatamente essas conversas entre os trabalhadores, relembrando os tempos antigos, sem qualquer tipo de roteirização, que formam o fio condutor do documentário.
“Eu tenho uma maneira de fazer documentário que é minha, que eu tento não fazer entrevistas. O filme é todo baseado nessas conversas, nessas trocas, entre os funcionários que foram demitidos. Tentei fazer o meu tipo de cinema com essas pessoas que me inspiraram”, disse Maria Augusta Ramos em um bate-papo pouco antes da exibição do filme.
Entre os demitidos da época, está o atual presidente da Federação Nacional das Associações do Pessoal da Caixa Econômica Federal (Fenae), Jair Pedro Ferreira. “A gente agora dá risada, mas na época a gente estava numa greve longa, de 21 dias, de repente Collor demitiu 110 pessoas. As entidades se organizam e começamos a nos movimentar. Eu tinha uma certeza: precisávamos acreditar na luta coletiva”, disse Ferreira no mesmo bate-papo antes da primeira exibição do documentário.
E o filme mostra que foi exatamente essa luta coletiva que fez os trabalhadores vencerem Collor. Durante mais de um ano, toda a categoria nacional se mobilizou para doar uma pequena parte de seus salários com o intuito de amparar financeiramente os demitidos. E deu certo. A mobilização denunciando as injustiças e a retirada de direitos seguiu e, em 1992, Collor sofreu o impeachment e todos os 110 trabalhadores foram readmitidos.
“O tiro saiu pela culatra porque nós nos unimos”, diz um dos trabalhadores nas conversas registradas por Maria Augusta Ramos. “A diretoria [da Caixa] até dizia que iríamos ganhar [a reversão das demissões] em todas as instâncias, mas que isso iria durar 10 anos. Mas eles não contavam que o Collor seria demitido”, diz um outro funcionário, hoje, às risadas.
Entre as rodas de conversas dos trabalhadores, o filme também mescla uma cena que se faz necessária: o discurso de Jair Bolsonaro na Assembleia Geral das Nações Unidas dizendo que o Brasil estava à beira do socialismo e que a ideologia se instaurou nas escolas e nos lares. Cena necessária, pois, carrega uma similaridade impressionante com um discurso de Collor que também é exibido no filme, dizendo que seu governo encamparia um “saneamento moral”.
Esse comparativo do passado com o presente para mudar o futuro é um aspecto que Maria Augusta Ramos faz questão de chamar a atenção. “O filme faz esse paralelo do Collor com o Bolsonaro porque é importante nos lembrarmos do que aconteceu com Collor, seu discurso, o enorme retrocesso que foi ao país, e que está se repetindo agora. A história se repete e a gente tem que olhar para impedir que fique pior”, disse a diretora em conversa com a Fórum.
Neste sentido, a perseguição à Cultura do atual governo é um sintoma de uma democracia de fachada que persegue vozes divergentes e, neste ponto, vem a importância de filmes com críticas políticas como o “Não toque em meu companheiro”. “É terrível o que está acontecendo com o país, uma enorme censura, não só a perseguição aos artistas, mas os cortes, o que está acontecendo com a Ancine, os músicos, o teatro… Acho que a gente não vive mais em uma democracia”, avaliou a diretora.
E por falar em olhar o passado para entender o presente, vale lembrar que, enquanto o filme sobre a luta dos trabalhadores da Caixa é lançado, a história de solidariedade se repete com os petroleiros, que encampam uma greve que já é considerada uma das maiores da história e que tem como intuito reverter a demissão de mais de mil trabalhadores de uma fábrica de fertilizantes no Paraná.
“Não toque em meu companheiro” terá estreia oficial em breve no Brasil e será exibido em março em Toulouse, na França, durante a 32ª edição do festival Cinelatino – Rencontres de Toulouse .