Onde estamos escondendo o racismo nosso de cada dia?

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A Greta tem nome e todos sabem. Por que Vanessa Nakate é apenas uma ativista africana?

Greta Thungberg, Vanessa Nakate e ouros jovens ativistas durante uma Conferência de Imprensa na COP25, em Madri. Foto Pablo Porlan / Hans Lucas
Greta Thungberg, Vanessa Nakate e ouros jovens ativistas durante uma Conferência de Imprensa na COP25, em Madri. Foto Pablo Porlan / Hans Lucas

Desde o flagrante da própria Vanessa Nakate diante do apagamento do seu corpo, voz e representatividade negra no Fórum Econômico Mundial, em Davos, militantes, em uma espécie de catarse, se manifestaram em defesa da ativista ugandesa. Mensagens de revolta, ataques violentos à agência de notícias americana Associated Press e infinitos compartilhamentos de notícias, textos e análises. Ao me deparar com a “fogueira” de informações sobre o ocorrido, um questionamento ecoou dentro de mim: onde estamos escondendo nosso racismo?

O caso de Vanessa Nakate veio à tona como um flagrante público da operacionalidade do conceito da raça. Ela estipula como as pessoas são vistas – “ser branco” ou “ser negro” está carregado de uma simbologia de privilégios e de exclusão, respectivamente. Quando a minha cor da pele é associada a uma ancestralidade marginalizada, inferiorizada e excluída, estou diante de uma dimensão social e política, que vai muito além da edição intencional de uma fotografia.




“Má intenção” foi a expressão usada pela Associated Press na tentativa de justificar-se pelo corte fatal feito na imagem da ativista Vanessa Nakate, de Uganda. O racismo, que nada tem a ver com intenções ou com caráter, segue se reinventando com o passar dos anos e dos diferentes contextos geracionais. Um ponto, porém, é unânime: o apagamento literal da população negra.

A jovem ativista Vanessa Nakate durante uma entrevista em sua casa, em Kampala, capital de Uganda. Foto Isaac Ksamani/AFP
A jovem ativista Vanessa Nakate durante uma entrevista em sua casa, em Kampala, capital de Uganda. Foto Isaac Ksamani/AFP

Apagamos as vozes negras, friamente, cortamos apenas uma representação de ativista negra e jovem do canto esquerdo da veiculação de uma fotografia, mantendo os cinco jovens brancos. Caro David Ake (diretor de fotografia da AP), por favor, assuma o seu racismo e não se esconda atrás de argumentos sobre “melhor composição da imagem”.

Apagamos as vozes negras quando em uma Conferência das Partes da Convenção Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (UFNCCC), que se diz decisiva, apresenta uma delegação internacional onde majoritariamente prevalece a branquitude. Estive presente na última COP25 e não precisamos de muitas análises para concluir que o apartheid racial é nítido no campo das negociações climáticas. Embora a representação de países do continente africano fosse perceptível, os espaços da cúpula realizada em dezembro de 2019, em Madri, perpetuam uma lógica racista e excludente.

Apagamos as vozes negras quando trazemos a pauta racial para agenda do clima apenas pela ótica das vítimas afetadas, e não temos a mínima preocupação com a pluralidade de atores e protagonistas para participar da linha de frente da tomada de decisão. É só fazer um breve exercício analítico e passear pelas arenas de debate das mudanças climáticas para constatar que a rotatividade de porta-vozes é relativamente baixa, mostrando que essa agenda está inserida num forte campo de disputas político-sociais.

O que aconteceu com a ativista Vanessa Nakate é (mais) um reflexo direto da perversidade do racismo. Em especial, quando a pauta é, especificamente, a trajetória de mulheres negras, não nos faltam similaridades para compartilhar. Todos os dias, no Brasil afora, mulheres negras são silenciadas, apagadas e esvaziadas em suas memórias. Logo, é com muita resistência que caminhamos na contramão das múltiplas opressões, temos driblado os estereótipos de uma sociedade profundamente desigual que nos rouba a dignidade de aparecer em uma foto, de contar nossos percursos e histórias. Nossa negritude incomoda o status quo, vamos seguir em estado incisivo de enfrentamento rumo à construção de políticas, estratégias e práticas antirracistas.

O debate sobre a crise climática traz muitos dados alarmantes e ações emergenciais. O que, porém, é urgente que nos debrucemos é a noção de justiça climática como fator indissociável dessas discussões.  É ela que assegura a sobrevivência de populações que são vulneráveis, se reconhecermos a mudança do clima como produto das desigualdades. Logo, trazer representatividade para os campos de diálogo e de decisão da agenda ambiental é imprescindível para que possamos dar passos mais certeiros rumo à transformação de um contexto desigual e estruturante no Brasil.

Faço questão de repetir o nome e sobrenome da Vanessa Nakate quantas vezes forem necessárias, pois até nesse detalhe encontramos pontos críticos de atenção. Referir-se a ela como “ativista climática africana” é mais um viés inconsciente que denuncia como o racismo abala processos identitários. Mulheres negras existem, decidem, representam, lutam, agem, transformam, libertam. A compreensão das interseccionalidades por um viés individual e coletivo nos ajuda a visualizar os múltiplos fatores que influem na trajetória da mulher negra, na percepção das limitações, desvantagens e discriminações que nos são impostas em situações cotidianas.

A Greta tem nome e todos sabem. Por que Vanessa Nakate é apenas uma ativista africana?

Me identifico com Vanessa Nakate todas as vezes que olho para uma foto de um evento da “bolha climática” e vejo que sou a única mulher negra de um auditório. Há uma parte de mim que é retratada na mídia como vítimas primárias das mudanças climáticas. Outra que busca “representatividade” das novas vozes da luta pelo clima. Ainda estamos distantes de um equilíbrio equitativo e justo, mas estamos caminhando nessa direção. Sou uma e muitas simultaneamente. Sou resistência. Sou luta.

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