‘Vim de lá’, uma boa nova que potencializa as origens do povo carioca negro numa ligação direta com nossos ancestrais
Por Edu Carvalho, compartilhado de Projeto Colabora
Não é estranho perceber que, mesmo entre os moradores de uma megalópole como o Rio de Janeiro, existe um desconhecimento grande sobre o surgimento da cidade e até mesmo sobre aqueles que estiveram presentes no momento. Uma dinâmica que parece ser amenizada com a possibilidade de um “Google” à palma das mãos, mas que ainda encontra dificuldade na efetivação para quem, mesmo hoje, não têm acesso à informação ou à internet.
Assim, é bom poder enxergar no jornalismo televisivo – com enorme alcance apesar da disputa de telas – um instrumento de conhecimento compartilhado com milhares de pessoas, todas ao mesmo tempo, como se fosse um clarão no mais escuro dos breus.
Foi o que aconteceu no último sábado, 25/11, quando logo após o almoço, na TV, surgia o apresentador e jornalista Alexandre Henderson com o programa ‘Vim de lá’, que mais parecia uma grande roda de troca com quem assistia. O programa exibido na TV Globo e dirigido por Chico Regueira, de pronto, é ambicioso: apresentar os caminhos que fazem do Rio um lugar mais africano – porque o é – a partir de uma viagem ao continente, cadenciada com a atmosfera carioca. E em pouco mais de uma hora, potencializar as origens do povo carioca negro numa ligação direta com nossos ancestrais.
O feito se dá por completo, e é por isso que fui atrás do apresentador do especial, numa entrevista que você lê abaixo. Para Henderson, a importância do projeto valida processos que norteiam o ativismo contemporâneo no Brasil: “Nosso país tem, sim, uma dívida histórica com o povo preto que precisa de reparação”.
Edu Carvalho: Foi sua primeira experiência em território africano? Se sim, como foi experimentar a partir do âmbito profissional?
Alexandre Henderson: Foi a minha primeira visita à África. Emoção à flor da pele. Era um sonho, que foi realizado através do meu trabalho. “Vim de Lá” trouxe temáticas que me atravessam como homem preto. Falar sobre os nossos descendentes que vieram para cá na condição de escravizados mexeu muito comigo. Por outro lado, a luta deles nos inspira. Estamos aqui de pé porque houve muita resistência. Voltei para o Brasil mais ciente ainda do quanto as narrativas a respeito da escravidão precisam ser ditas, ouvidas, para que não sejam repetidas. Nosso país tem, sim, uma dívida histórica com o povo preto que precisa de reparação. A desigualdade social que está aí para todo mundo ver é consequência do horror que foi feito com gerações de antepassados negros. O mergulho foi profundo.
Edu Carvalho: Jornalistas, muitas vezes, se veem com distanciamento das matérias/pautas produzidas. Em ‘Vim de Lá’, como foi estar imerso e romper com essa ‘regra’?
Alexandre Henderson: Sou negro, tenho antepassados que vieram do solo africano. A diáspora foi cruel, machucou gerações de negros e negras, destruiu sonhos, causou sofrimento, dor, matou muita gente física e emocionalmente. Passados os séculos, as correntes, mordaças, chibatadas, hoje, já não estão entre nós, mas as opressões contemporâneas fazem parte das rotinas de quem é negro nesse país. Só quem é preto sabe a delícia e a dor de carregar na pele essa cor. Sou jornalista, meu papel é de escuta, mas não há como não se envolver ou se emocionar com temáticas que fazem parte da minha história e dos meus. Tenho legitimidade para falar em primeira pessoa sobre questões que me afetam e atingem milhões de brasileiros. A informação sempre anda em primeiro lugar, mas a emoção marcou presença. E, que bom, porque tenho certeza de que ainda vai atingir o coração de muita gente.
Edu: Há quase uma década, o Rio redesenhou sua história ao reconhecer a região da Pequena África como de grande importância na fundação da cidade. Já se pode dizer que é um conhecimento aprofundado e/ou consolidado? Quais seriam as maiores dificuldades?
Alexandre Henderson: A Pequena África é a história viva do Rio de Janeiro. No Cais do Valongo houve o desembarque de mais de um milhão de negros que chegaram aqui na condição de escravizados. Um sítio arqueológico que foi revelado em 2011, quando aconteceram as obras do Porto Maravilha. Um lugar que passou por vários momentos de apagamento. Naquelas pedras silenciosas, muita gente gritou, chorou e pisou com dor física e moral. Ali tem o Cemitério dos Pretos Novos. Corpos que foram triturados, sem respeito algum aos ritos de passagem. Um passeio com um guia pela Rua Camerino é uma viagem ao século XIX, quando crianças e adolescentes escravizados eram expostos como mercadorias para venda. Debaixo do piso da região da Pequena África, certamente, há muitas histórias por vir. Muitas narrativas estão enterradas, mas o tempo há de trazer à tona o que foi silenciado.
Edu: Com tanta riqueza histórica desvendada, o que fica de resumo para o Alexandre jornalista e para o cidadão?
Alexandre Henderson: A potência do povo preto que contribuiu com a história, cultura, economia e a formação do povo brasileiro. O legado de luta da população negra em todos esses séculos. A necessidade cada vez maior de letramento racial da nossa sociedade. A educação é o caminho. O que esteve há anos debaixo do tapete precisa ser contado com profundidade e, sobretudo, verdade. O povo preto tem heróis e heroínas que ajudaram a construir esse país e que precisam ser conhecidos. Nossa trajetória vai muito além do tráfico transatlântico. Tivemos reis, rainhas e feitos que a história omitiu.