Operação Escudo: o que pode estar por trás da chacina policial na Baixada Santista?

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Vingança, milícia, rearranjo nos mercados ilegais: pesquisadores avaliam possíveis motivações da operação policial

Por Gabriela Moncau, compartilhado de Brasil de Fato




O secretário de Segurança Pública e ex-policial da Rota, Guilherme Derrite (de camisa), vai até território no Guarujá ocupado militarmente pela Operação Escudo – SSP-SP

Deflagrada depois da morte de um soldado da Rota no último 27 de julho, a Operação Escudo já matou 16 pessoas e prendeu outras 296 em menos de duas semanas na Baixada Santista. As hipóteses sobre o que pode estar por trás da chacina policial exaltada pelo governador Tarcísio de Freitas (Republicanos) extrapolam a simples vingança.  

Ativistas e jornalistas especulam se esta, que é a mais letal intervenção institucional da polícia de São Paulo desde o Massacre do Carandiru em 1992, estaria preparando terreno para a instauração de milícias – modelo tão disseminado no estado de origem do governador, o Rio de Janeiro.    

Cientistas políticos veem o discurso “bandido bom é bandido morto” como um aceno de Tarcísio para se reaproximar do público bolsonarista, com quem a relação deu leve estremecida desde os desentendimentos que teve com Jair Bolsonaro (PL)  às vésperas da votação da Reforma Tributária. 

Outros pesquisadores ouvidos pelo Brasil de Fato aventam que a megaoperação policial, cuja duração será de ao menos 30 dias, deve mudar os arranjos dos mercados ilegais no território que abriga o Porto de Santos, por onde passam 30% das trocas comerciais do país.  

Além das 162,4 milhões de toneladas de cargas legais comercializadas só no ano passado pelo porto que Tarcísio se empenha em privatizar, movimentando US$ 174,6 bilhões, é ali também a principal saída da cocaína para o tráfico transnacional, em especial para a Europa.    

Discurso de “combate ao crime”

Em coletiva de imprensa no Palácio dos Bandeirantes 72 horas depois de irrompida a Operação Escudo e já com oito pessoas assassinadas pela polícia, Tarcísio anunciou que pretende aumentar o efetivo policial na região.  

“Devemos ter mais uma unidade da PM [Polícia Militar] na Baixada”, informou, antes de elogiar o “profissionalismo” da intervenção. “Há de se ter respeito com a instituição, com a polícia”, disse o governador paulista. “Sem ordem, a gente nunca vai ter progresso”, afirmou. Dias depois, chamaria as mortes de “efeito colateral” de “combate ao crime”.  

Para José Claudio Souza Alves, sociólogo e professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), “esse discurso dualista de que as forças de segurança estão combatendo o crime, os ilegalismos, as drogas, tem que ser desmontado por dentro. Essa estrutura toda só funciona, só tem esse potencial a longo prazo e de permanência, graças à estrutura de segurança pública”. 

“Essas megaoperações têm um papel crucial em direcionar a culpa para os traficantes e para os mais frágeis dessa história. O objetivo geralmente é absorver, ocultar e esconder a estrutura que é a base onde tudo isso funciona”, avalia Alves, pioneiro nos estudos sobre as milícias cariocas e autor do livro Dos Barões ao extermínio: uma história da violência na baixada fluminense.  

“Quando se menciona o PCC [Primeiro Comando da Capital], o Comando Vermelho, ‘o traficante’, é crucial associá-los imediatamente ao Estado, aos agentes de segurança pública e à estrutura das Forças Armadas, estrutura alfandegária. Todos eles estão imbricados nessa rede, onde ocorre corrupção e suborno. E é muita grana”, ressalta. 

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Desencapuzados 

Se por um lado chacinas praticadas por policiais não são – nem de longe – algo novo, esta apresenta algumas mudanças no padrão do terrorismo de Estado em São Paulo nos últimos anos. Os alvos – jovens, negros e periféricos – seguem os mesmos. Mas, desta vez, a matança acontece com o uso da farda, à luz do dia e com uma ocupação territorial continuada.  

modus operandi é diferente das execuções que aconteceram na sede da torcida Pavilhão 9 ou em Osasco e Barueri em 2015, por exemplo. Em ambas as ocasiões, policiais vestindo touca ninja foram até o lugar, cometeram o massacre e se retiraram.  

“No Rio de Janeiro, a gente observa que as chacinas, historicamente, foram se desencapuzando. Aquelas do início dos anos 1990 – Vigário Geral, Acari, Candelária –, todas foram feitas com participação de policiais, mas encapuzados”, recorda Daniel Hirata, sociólogo e coordenador do Grupo de Estudos de Novos Ilegalismos da Universidade Federal Fluminense (UFF).

“Ao longo das últimas três décadas, houve uma oficialização das chacinas, ou seja, passaram a ser feitas em horário de expediente por policiais atuando formalmente. Portanto, com amparo e autorização das autoridades políticas e policiais. É realmente assustador que isso venha a acontecer em São Paulo também”” avalia Hirata. “É importante ligar o sinal amarelo de atenção”.

Para o pesquisador da UFF, a reação à morte do soldado Patrick Reis é “a principal motivadora das ações”: “Isso não é pouco. Não há legalidade numa operação realizada pra vingar a morte de um policial”. A glorificação da operação por parte do governador e seu secretário de Segurança Pública, o ex-policial da Rota Guilherme Derrite (PL), é destacada por Hirata como outro aspecto fundamental do que está em curso.  

“As autoridades políticas acham que estão respaldando, amparando as ações dos policiais. Mas, de fato, o que isso desencadeia é, cada vez mais, uma autonomização das polícias para atuar fora da lei”, observa Hirata. “Então o governador acha que está ganhando as forças policiais. Na verdade, ele está perdendo o controle político do poder de armas”, ressalta.   

Em diversas ocasiões, Tarcísio e Derrite classificaram as denúncias de tortura e execuções sumárias na Baixada Santista como “narrativas”. De acordo com a Secretaria de Segurança Pública de São Paulo (SSP-SP), dos 16 policiais envolvidos nas mortes oficiais contabilizadas até o momento, 10 são de batalhões que fazem uso de câmeras corporais. Os vídeos de apenas sete câmeras foram entregues ao Ministério Público de São Paulo e, até o momento, o conteúdo está sob sigilo. 

“É o descontrole das forças policiais pelos poderes políticos que leva à formação de milícias. Uma vez que existe essa possibilidade de atuar com o uso da força sem qualquer limitação, você pode negociar isso em um mercado ilegal”, define Daniel Hirata. É o chamado “arrego”.  

“Essa lógica de proteção e extorsão é tipicamente miliciana. Isso não quer dizer que vão se instalar milícias em São Paulo da mesma maneira como ocorre no Rio de Janeiro. Não é isso que estou dizendo. Mas tem uma lógica de funcionamento que associa o descontrole do uso da força à formação de grupos do tipo miliciano”, explica. 

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Interesses político-eleitorais 

Somando as vítimas fatais da Operação Escudo com as de incursões policiais na Bahia e no Rio de Janeiro, as forças de segurança no país assassinaram 46 jovens em apenas dez dias. “Eu percebo uma conjuntura em transição, que vem de um bolsonarismo muito forte numa ascensão dessa estrutura militarizada que compõe as bases de suporte político-eleitoral”, avalia José Cláudio Alves.  

“Isso acontece no momento em que não é mais Bolsonaro. O que, para mim, denota que o momento Lula permite e enseja isso. Em função de interesses do governo que estão associados diretamente à negociação dentro do Congresso Nacional, obtenção de apoio parlamentar, diálogo na relação com a direita e a extrema direita”, contextualiza.   

“A própria ‘Daniela do Waguinho’ e o Waguinho, lá em Belford Roxo, se projetaram a partir da montagem de um destacamento do 39º Batalhão da Polícia Militar em uma área onde não havia tal estrutura”, lembra José Cláudio, referindo-se a Daniela Carneiro, que chefiou o Ministério do Turismo até o último 14 de julho, quando saiu da pasta depois de romper com seu partido, o União Brasil.  

A entrada, em 2021, do novo batalhão no Complexo do Roseral onde havia atuação do Comando Vermelho, conta Alves, foi acompanhada de cerca de 30 mortes cometidas por policiais. Em 2022, Daniela Carneiro foi a deputada federal mais votada do Rio de Janeiro, recebendo apoio de famílias envolvidas em milícias da Baixada Fluminense, como Juracy Alves Prudêncio (que está preso) e sua esposa, Giane Prudêncio.  

“Essa estratégia foi montada com o Cláudio Castro [governador do RJ] e o próprio Waguinho [prefeito de Belford Roxo], que elege a esposa e a esposa que se torna ministra, isso tudo é um ensaio calculado. Não se trata de algo casual ou fortuito”, avalia o professor da UFFRJ.  

“A jogada que o Tarciso faz é muito semelhante à de Cláudio Castro. Está dentro de um cenário hoje cada vez mais aceito pelos ganhos político-eleitorais, pela composição no Congresso, por essa dimensão toda que a política nacional hoje vive, ainda no rescaldo do governo Bolsonaro”, pontua. 

Compreendendo a situação na Baixada Santista como um “microestado de exceção”, José Cláudio considera que “montar uma estrutura miliciana nos moldes do RJ não é necessário”.  

“Ensaios como esse lá no Guarujá são ensaios para mais ganhos. Mais ganhos como? Vão encerrar o tráfico? Não, ao contrário. Os preços vão ficar mais altos, a estrutura do Estado toda vai ganhar muito mais: mais dinheiro, mais voto, mais controle territorial. E aqueles que são tratados como inimigos, como o PCC, vão ter que se adequar à reconfiguração desses acordos”, descreve Alves.  

O porto de Santos 

Isabela Vianna Pinho, integrante do Núcleo de Pesquisas Urbanas NaMargem, da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), tem como tema de doutorado O mercado transnacional de cocaína no Brasil: etnografia no porto e em uma favela de Santos.   

Segundo Pinho, a hegemonia do PCC nos mercados ilegais do complexo portuário de Santos – que se estabeleceu a partir dos anos 2000 e principalmente da década 2010 – pode estar em disputa. Mas não por outra facção.  

“Tenho escutado na minha pesquisa que isso tem mudado nos últimos anos, que essa hegemonia pode estar em aberto. Talvez pela própria tentativa e atuação de policiais de tentar entrar nesse mercado”, expõe a socióloga.  

“Não estou falando da polícia de modo geral, que é muito heterogênea. Seriam alguns atores dentro da polícia”, afirma Pinho, destacando o crescimento econômico e político das forças policiais com o advento do bolsonarismo. “Desconfio, pelo que meus interlocutores falam, que pode estar acontecendo uma reconfiguração. Já estava em curso, mas agora pode estar tomando outra dimensão com o conflito”, aponta.   

Edição: Rodrigo Chagas

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