Os 100.000 mortos dos Estados Unidos: assim fracassou o país mais poderoso do mundo

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PorAmanda Mars e Pablor Guimón, compartilhado de El País – 

A liderança errática de Trump, os alertas ignorados durante meses e a falta de recursos levaram ao limite uma apagada potência americana, que já ultrapassaram a simbólica cifra dos seis dígitos

Uma das imagens mais eloquentes desta crise foi gerada num sábado do fim de março pelo prefeito de Nova York, Bill de Blasio, quando foi à sede da ONU recolher um lote de 250.000 máscaras doadas pelo organismo, porque a todo-poderosa cidade dos arranha-céus, símbolo de riqueza no país mais rico do mundo, não tinha o suficiente ―nem máscaras, nem respiradores, nem leitos hospitalares― para a onda de doentes de covid-19 que se avizinhava. O chamado paciente zero dos Estados Unidos se apresentou em 21 de janeiro num hospital de Seattle com um pouco de febre. A primeira morte, de uma mulher de 60 anos na Califórnia, ocorreu em 6 de fevereiro. A partir daí, um amontoado de erros, alertas ignorados e novas e velhas carências levaram ao desastre sem que uma das comunidades científicas mais robustas do planeta tivesse conseguido evitar.

Os Estados Unidos acabaram de alcançar 100.000 mortos por coronavírus (eram 100.442 na manhã desta quinta-feira, segundo a contagem da Universidade Johns Hopkins), longe dos 60.000 que a Administração calculou em seus prognósticos mais otimistas, ou dos 58.000 caídos na Guerra do Vietnã, um trauma gravado no imaginário coletivo norte-americano como vara para medir as tragédias. Quase 1,7 milhão de pessoas já deram resultado positivo em exames de diagnóstico. Em um país com 330 milhões de habitantes, a taxa de mortalidade nacional é muito inferior à da Espanha, por exemplo, mas territórios muito castigados, como Nova York, distorcem a fotografia.




A pandemia ressaltou a disparidade racial e social do país, atacando com mais dureza os pobres e as minorias, e reflete o fechamento dos Estados Unidos ao mundo. Donald Trump comparou este desafio à Segunda Guerra Mundial, mas os Estados Unidos saíram daquele conflito fortalecidos como um líder global e guardião mundial das liberdades. Desta vez, enquanto acelera na corrida planetária pela vacina, não conseguiu ir muito além de ajudar a si mesmo.

Alerta desde o primeiro dia

A Administração Trump foi informada desde que chegou à Casa Branca que uma pandemia desta gravidade era uma ameaça muito real. Não só não preparou a resposta como também reduziu os recursos humanos e materiais que já estavam mobilizados para enfrentá-la.

Em 13 de janeiro de 2017, sete dias antes da posse do republicano como presidente, a equipe de Barack Obama, que estava de saída, informa à equipe entrante, no exercício habitual de transição, sobre o risco de que a gripe aviária H9N2 se transforme na “pior pandemia de gripe desde 1918”. São explicados os possíveis desafios, como a escassez de respiradores e a necessidade “primordial” de uma resposta nacional coordenada. Em abril de 2018, ao se tornar assessor de Segurança Nacional, John Bolton demite Timothy Ziemer, encarregado de liderar a reação da Casa Branca a uma eventual pandemia. Não é substituído, e sua equipe fica espalhada. Essa abrupta demissão significa que não há mais um alto funcionário encarregado exclusivamente da segurança sanitária geral.

Em 9 de fevereiro de 2018, o presidente sanciona uma lei que corta 1,35 bilhão de dólares (7,22 bilhões de reais, pelo câmbio atual) das verbas dos Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) durante 10 anos. Em setembro de 2018, o Departamento de Saúde e Serviços Humanos desvia 266 milhões de dólares de financiamento dos CDC para o programa de detenção de crianças imigrantes.

O primeiro caso da covid-19 emerge na província chinesa de Hubei em 17 de novembro de 2019. No final daquele mês, as agências de inteligência norte-americanas, que vinham advertindo durante pelo menos três anos sobre a “grande ameaça” de uma pandemia, alertam para uma doença “cataclísmica” e “fora de controle”. Em janeiro, o chefe da Agência de Alimentos e Medicamentos (FDA), Stephen Hahn, pergunta ao Departamento de Saúde se pode começar a contatar as empresas sobre o abastecimento de equipamento de proteção pessoal. Dizem-lhe que não. Respondem, segundo o The Wall Street Journal, que isso poderia alarmar a indústria e passar a impressão de que o Governo estava despreparado.

Em 18 de janeiro, o secretário (ministro) da Saúde, Alex Azar, tenta pela primeira vez abordar a pandemia com Trump. Eles mantêm uma conversa telefônica, mas o presidente quer falar sobre cigarros eletrônicos (os EUA acabavam de proibir os aromatizados), e não sobre o coronavírus. No mesmo dia, Rick Bright, diretor da Autoridade de Pesquisa e Desenvolvimento Biomédico Avançado, hoje afastado por Trump, pede a criação de um grupo coordenado de resposta ao coronavírus. Ouve como resposta que isso não era urgente.

Em 30 de janeiro a OMS declara que o surto do coronavírus é uma emergência de saúde pública internacional. Três dias mais tarde, Trump proíbe indivíduos procedentes da China de entrarem nos EUA. Pouco mais de um mês depois, em 11 de março, as viagens da Europa. Nesse dia a OMS declara que a covid-19 é uma pandemia global.

Os CDC se recusam a utilizar os exames de diagnóstico da OMS, preferindo fabricar um próprio, que afinal se mostraria defeituoso, o que causa um grave atraso na capacidade inicial de testar pacientes. Em meados de fevereiro, a equipe de saúde pública tem claro que é preciso fechar colégios e negócios em pontos quentes da epidemia e que o Governo deveria recomendar a distância física e o teletrabalho. Mas levam três semanas para convencer o presidente das terríveis consequências de não agir rapidamente. Em 13 de março, Trump finalmente declara a emergência nacional.

O Trump mais estrambótico e isolado

O eleitor médio de Donald Trump já desdramatizou o jeito bufão do seu presidente, um conceito que engloba desde insultos públicos contra outros líderes mundiais até fotomontagens em redes sociais ou brigas constantes com jornalistas. Claro que não gostam, dizem, seria melhor que não tuitasse, mas, por baixo de toda essa pirotecnia, ressaltam, há simplesmente um republicano que está reduzindo impostos, nomeando juízes conservadores para a Suprema Corte e coibindo a imigração irregular. Quando o histriônico Trump, um magnata que virou showman televisivo, venceu as eleições, proliferaram análises e debates sobre se o sistema norte-americano, com suas instituições e órgãos públicos, faria o necessário contrapeso às extravagâncias do novo inquilino da Casa Branca.

Que efeitos reais tem que o presidente use uma imagem com acenos à série Game of Thrones para ameaçar o Irã com sanções? Quanto importa que chame de “fraco” e “falso” o primeiro-ministro do Canadá no Twitter? Que defina suas entrevistas coletivas como shows de rock? Quais são os riscos reais da bizarrice?

A pergunta foi definitivamente respondida em 23 de abril, quando, em meio à pior pandemia em um século, com mais de 23.000 norte-americanos mortos, o presidente sugeriu perante os jornalistas o uso de injeções de água sanitária para matar o vírus. “Vejo o desinfetante, que nocauteia o vírus em um minuto. Há alguma maneira de podermos fazer algo assim mediante uma injeção? Porque você vê que ele entra nos pulmões e causa um estrago tremendo nos pulmões, então seria interessante experimentar”, afirmou. Dois dias depois, alegou que estava sendo sarcástico. As autoridades de emergências do Estado de Maryland tiveram que lançar um alerta aos cidadãos para não beberem desinfetante. Tinham recebido mais de 100 chamados perguntando sobre seu possível consumo como tratamento.

Trump se instalou na negação durante semanas, minimizou a gravidade da covid-19, chegou a dizer que desapareceria como “um milagre” (27 de fevereiro) e a equiparou à gripe comum (9 de março). Depois, entrou em combustão. Ao longo de dois meses, deu informações errôneas sobre vacinas e tratamentos e contradisse publicamente todos os seus especialistas e suas próprias recomendações oficiais, como quando estimulou o país a retomar sua atividade, no domingo de Páscoa, quando atiçou as manifestações mais agressivas contra o confinamento e quando afirmou que não pretendia usar máscara. Intensificou seus ataques à imprensa e aos democratas. Na semana passada, em um dos episódios mais estrambóticos da crise, revelou que estava tomando preventivamente hidroxicloroquina, um medicamento contra a malária desaconselhado por seu próprio Governo fora de ensaios clínicos e ambientes hospitalares, por todos os riscos que acarreta. E Trump o estava tomando sem estar doente, pois até agora sempre teve resultados negativos nos exames a que se submeteu. Dias depois, a OMS suspendeu os ensaios clínicos de hidroxicloroquina, “por precaução”.

No momento mais grave enfrentado por um presidente dos Estados Unidos em várias gerações, Trump saturou-se de si mesmo. Durante semanas, ignorou os técnicos e se trancou em seu círculo de confiança, onde seu genro, Jared Kushner, ocupa uma posição principal. A crise não serviu para moderá-lo nem para que retificasse sua posição isolacionista, com sua rejeição visceral aos organismos multilaterais. Pelo contrário, suspendeu o financiamento da Organização Mundial da Saúde, acusando-a de agir sob os ditames da China, respondeu à má gestão de Pequim agitando teorias sem base sobre a origem do vírus e criticou a falta de previsão da Europa. Agora, enfatiza a proximidade de uma vacina. Também o gigante asiático faz isso. É nesta corrida pela vacina que Washington poderia recuperar o terreno internacional perdido.

O desastre de Nova York

“Não aprovarei uma ordem de ficar em casa, isso assusta as pessoas (…). O medo, o pânico é um problema maior que o vírus.” O governador de Nova York, Andrew Cuomo, recusou com esta contundência as medidas de confinamento em declarações ao podcast diário do The New York Times, em 18 de março, quando os Estados Unidos completavam seu quinto dia sob a declaração de emergência, os vetos aos viajantes da Europa já duravam mais de uma semana e os primeiros territórios afetados pelo surto, como a Califórnia, tinham ordenado o fechamento de atividades não essenciais. Àquela altura, o Estado de Nova York já era o epicentro da pandemia no país. Hoje, supera a Espanha em número de mortos, apesar de ter menos de metade da população do país europeu.

No relato da pandemia na maior potência mundial, Nova York exige um capítulo à parte, não só pelo volume das suas cifras ―concentra uma em cada três mortes de todo o país―, mas também porque sintetiza como poucos os pecados de muitas nações: o hábito de subestimar riscos, as consequências de um sistema público dizimado, as lutas políticas intestinas e a posterior dispersão de culpas por todo lado. Que o democrata Cuomo tenha vivido nesta crise o máximo histórico de sua popularidade mostra como uma boa comunicação e a comparação com um líder nacional como Donald Trump podem embelezar uma gestão com falhas retumbantes.

A negativa de Cuomo em decretar o confinamento obrigatório serviu também para que um velho inimigo político dele, o também democrata Bill de Blasio, prefeito de Nova York, ficasse bem na fita, pois estava havia vários dias defendendo medidas desse tipo. Em 17 de março, os seis condados da baía de San Francisco já tinham declarado uma quarentena obrigatória, e no dia 19 a medida se tornou extensiva a toda a Califórnia. No dia 22, Cuomo fechou Nova York também. O vírus tinha dado sinais de vida primeiro na Costa Oeste, mas em Nova York os casos começaram a duplicar a cada dois ou três dias, e hoje tem 10 vezes mais mortos.

Não há um cálculo sobre os prejuízos que teriam sido evitados com a decretação do confinamento uma semana antes. A cidade de Nova York também foi prejudicada pela maior densidade populacional e por um estilo de vida que favorece os contágios, com milhões de pessoas abarrotando o transporte público e se esbarrando em pequenos comércios de bairro. A covid-19 tinha começado a chegar à cidade durante os meses de janeiro e fevereiro, procedente de viajantes vindos da Europa, principalmente, como concordam as autoridades e relatórios científicos publicados em abril.

Os hospitais dos bairros mais pobres da cidade de Nova York, de longe os mais atingidos pelo golpe da pandemia, tiveram dificuldades em obter respiradores e equipamentos necessários depois que receberam, em 19 de março, a notícia de que perderiam recursos públicos. Um painel promovido por Cuomo tinha decidido cortar 400 milhões de dólares (2,14 bilhões de reais) do Medicaid (a cobertura sanitária dos desfavorecidos) e, apesar dos apelos contrários dos legisladores, o governador seguiu em frente, alegando que em contrapartida contaria com a ajuda do resgate global aprovado pelo Congresso dos EUA.

Em 25 de março, aprovou uma portaria especialmente polêmica, pela qual milhares de pacientes em recuperação da covid-19 foram transferidos para asilos de idosos, os mesmos lugares que ele mesmo tinha definido como “terreno fértil para o vírus”. Uma contagem da Associated Press indica que pelo menos 4.500 doentes foram enviados a esses centros, onde ocorreram 5.800 mortes, mais que em qualquer outro Estado. O governador reverteu a ordem em 11 de maio.

A errática política de Trump e o déficit de equipamentos no âmbito nacional também marcaram a crise de Nova York. Há alguns dias, entretanto, quando Cuomo foi questionado por sua própria desatenção nos primeiros compassos da pandemia, culpou meio mundo, incluindo a imprensa: “Os governadores não nos dedicamos às pandemias globais, mas há toda uma comunidade médica nacional e internacional que sim”, disse, para continuar: “Onde estavam todos os especialistas? Onde estavam o The New York Times, o The Wall Street Journal?”.

A guerra dos governadores

A pandemia expôs, como poucas crises antes dela, a natureza federal dos Estados Unidos. Trump permitiu aos governadores dos Estados que recuperassem uma musculatura executiva que vinha se atrofiando nas últimas décadas de acúmulo de poderes presidenciais. Assim, os Estados se tornaram um inesperado contrapeso ao Executivo federal e, como dizia Cuomo, os governadores foram obrigados a enfrentar uma devastadora crise global que nunca teriam imaginado que entraria em suas competências.

A falta de uma estratégia federal coordenada e eficaz deu lugar a batalhas abertas nos Estados para conseguir material médico, entrando, cada um por sua conta, em um enlouquecido mercado global. “Percebi que teríamos que montar, em nosso centro operacional de emergências estaduais, um escritório de compras que competiria com o mundo”, disse a democrata Gretschen Whitmer, governadora de Michigan, depois de uma videoconferência com outros governadores em que a Casa Branca lhes informou que deveriam procurar material médico por sua conta. “É uma loucura”, disse o mandatário do Estado de Washington, o democrata Jay Inslee. “É como estar na Segunda Guerra Mundial e que o Governo federal não fabrique as botas.”

Competiram entre eles e também com a própria Administração federal. O governador de Maryland, o republicano Larry Hogan, chegou a dizer que tinha milhares de exames de diagnóstico guardados “em um local não revelado”, em parte porque não queria que fossem confiscados pelo Governo Trump. Em plena campanha eleitoral, afloraram as críticas de que a Administração federal favorecia Estados em mãos republicanas. E esta batalha travada por cada Estado, sem protocolos ou diretrizes federais bem marcados, levou a diferentes avaliações sobre a gravidade da situação, deficiências na contagem de casos e até medidas de fechamento de fronteiras internas, com episódios de agressividade dos moradores de um Estado contra visitantes de outros.

Na desescalada também é cada um por si, ignorando em muitos casos as diretrizes publicadas no âmbito federal, embora os Estados tenham forjado alianças para decidir a melhor maneira de reabrir suas economias e construído sistemas para estudar como responder a novas ondas da Covid e a futuras pandemias. Tudo sob as pressões de um presidente com pressa em reabrir o país. Com eleições em novembro, urge reativar uma economia que constituía seu principal argumento para a reeleição. E estimular a volta à normalidade falando no Twitter é fácil, quando são os governadores que deverão responder pelas decisões que venham a tomar.

Trump já disse que sua autoridade como presidente “é total”, mas na hora da verdade deixou aos governadores o peso da responsabilidade. São eles os que impõem as restrições e as suspendem. E, nas pesquisas, suas reações à pandemia são mais bem avaliadas que a do presidente. A atitude de Trump, disse a porta-voz da Casa Branca, Kayleigh McEnany, demonstra seu compromisso com o federalismo. Outros acreditam que seja uma estratégia para evitar a responsabilidade.

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