Por Henrique Cazes, publicado no Jornal GGN –
Este CD é antes de mais nada a comemoração de 80 anos de um músico especial, de sutil grandeza. Um presente para seus fãs e estudiosos da música brasileira. Um painel de momentos raros, fora da discografia convencional do artista e que mostram o quanto Joel Nascimento contribuiu para o aperfeiçoamento do estilo brasileiro de bandolim e o quanto sempre esteve disposto a colocar seu som em diálogo com vários segmentos de nossa música. Por isso mesmo seu bandolim aparece aqui junto a diferentes instrumentações em uma ampla gama de estilos.
Acredito que seja possível descrever a essência do músico Joel Nascimento dando atenção a três quesitos: som, estilo e improviso.
O som
Não se pode aquilatar com absoluta precisão o quanto do som especial que Joel obtém do bandolim é fruto de seu esforço para vencer dificuldades auditivas. 0 que se pode observar na faixa “Estudando e compondo em casa”, é que mesmo com pouco tempo de convivência com bandolim (cerca de 2 anos naquela altura, em 1970), o projeto de som já estava lá, pronto. Som cheio, com o máximo de sustentação e volume capaz de se impor nos ambientes turbulentos. Mas, de onde veio essa ideia de som? Tenho um palpite: de Waldir Azevedo.
Quando “Brasileirinho” estourou em meados de 1949, Joel tinha 12 anos de idade e viveu a onda Waldir intensamente. Começou tocando cavaquinho afinado como bandolim e procurando copiar o som de irmão Joir, dois anos mais velho, tinha aulas de violão com Francisco seu ídolo primeiro. 0 Sá, tocava com Waldir e Joel adolescente ia na Rádio Clube do Brasil assistir os programas que em que Azevedo atuava com seu conjunto. Ali presenciou ao vivo a sonoridade que o marcou
Depois de experimentar instrumentos de maior volume sonoro como o piano e o acordeom, já perto dos trinta anos, retornou ao Cavaquinho, usando um instrumento modelo Tico-tico, mais grave e apropriado para a afinação de bandolim. Assim, sem saber, se preparou para o encontro com bandolim, que aconteceu em 1968, quando ganhou um bom instrumento de presente do amigo Oracy, um amante do choro que promovia rodas em casa na Muda da Tijuca
O primeiro bandolim era bom, mas não tinha algo especial que Joel encontrou num segundo instrumenta, construído em São Paulo por Estevão Soros. Esse instrumento, que ele apelidou de “Chorando pelos dedos” pois foi com ele que gravou o primeiro Lp que tem esse titulo, foi o que durante três décadas deixou a marca do som de Joel no bandolim brasileiro.
Mas tudo que é bom um dia se acaba e o “Chorando pelos dedos” teve um problema sério de empenamento, perdeu som e afinação e deu lugar a outros instrumentos mais convencionais. Somente em 2000 o lutier Tércio Ribeiro construiu um bandolim de alta qualidade e que chegou numa hora importante, pois as dificuldades de audição se agravaram naturalmente com a idade. Come se pode ouvir na última faixa, o som es la, firme, com o mesmo vigor e brilho,.
o estilo
Quando Joel Nascimento foi estudar piano no Conservatório Brasileiro de Música com Max de Menezes Gil, a música, que era até então algo ligado ao divertimento, curtição, virou assunto sério. Em quatro anos de convívio com o ambiente do Conservatório e vivenciando uma certa moda de musica de concerto na cidade, Joel se apaixonou de forma profunda e definitiva.
A preocupação com o acabamento e os mínimos detalhes de uma interpretação se estabeleceu de forma marcante. Mesmo o problema no ouvido direito, que impediu a continuação dos estudos de piano, não anulou esse lado que voltou a aflorar quando o instrumentista finalmente encontrou o bandolim, aos 31 anos de idade.
Nas faixas deste CD, assim como em toda discografia do solista, pode-se perceber com careza o capricho no fraseado, a execução perfeita do tremolo, a ornamentação abundante em glissandos mordentes e apojeaturas.
Tudo isso veio do estudo de piano e foi adaptado de forma perfeita, aproveitando os recursos do bandolim e dando a Joel um estilo diferente, mais clássico, sem deixar de ser chorão, moleque. Uma riqueza por todos os lados.
O Improviso
Se tem um aspecto sobre o qual ninguém se entende no choro, esse aspecto é o improviso. Radamés Gnattali achava que pequenas alterações de melodia que os chorões costumam colocar em suas interpretações não eram improviso, enquanto Jacob do Bandolim dizia que era justamente esse o ethos, o espírito da coisa. Villa-Lobos via o improviso que interessava no contraponto enquanto Pixinguinha afirmava que o que se ensaia não é improvisado. Já o chorões mais recentes se dividem entre os que incorporaram práticas do jazz e outros que se mantém mais à moda Jacob.
Quando despontou como profissional em meados da década de 1970, Joel rapidamente chamou a atenção dos arranjadores justamente porque sua maneira de improvisar transcendia as receitas mais convencionais. Essa maneira misturava o conceito de um improviso funcional, ferramenta da fluência e marca dos intérpretes que dominam o choro na tradição de Pixinguinha e um outro improviso, mais “de exibição”, virtuosístico, que flerta com o jazz e exibe ao máximo os recursos do bandolim,
Resumindo nosso herói: em Joel Nascimento a técnica trabalha para o som. 0 som dá suporte ao estilo e o improviso costura tudo isso com muita fluência e bom humor 0 bandolim de Joel resume o melhor de dois mundos, num ponto equidistante entre o Suvaco de Cobra e o Conservatório de Varsóvia.