Por Luis Nassif em Jornal GGN –
A primeira vez que ouvi Jacob do Bandolim creio ter sido em um programa da TV Excelsior, apresentado por Gilberto Gil e Caetano Veloso. De dia, tinha ido com amigos na represa Bortolan, em Poços de Caldas. Tomei muito sol. À noite fui dormir com febre e queimaduras por todo o corpo. Acabei levantando e indo assistir televisão na sala.
Lá ouvi Jacob interpretando “Lamentos”, de Pixinguinha. Achei até quer tinha morrido e ouvia os sons dos anjos.
No dia seguinte, saí feito louco atrás de histórias do Jacob. Fui encontrar na casa ao lado, meu tio Leonardo Mesquita, carioca, que fora amigo de adolescência de Jacob. Filho de portugueses, tio Léo morava na rua do Catete, no Rio, e várias vezes levou o amigo Jacob para almoçar em casa. Também foi amigo e aluno de Dilermando Reis, de quem guardava um retrato com dedicatória carinhosa.
O tio nos deu duas informações sobre Jacob. A primeira, sobre sua rivalidade com Luperce Miranda:
– Luperce tem a técnica, Jacob o sentimento, dizia o tio, repetindo frase padrão do Rio sobre ambos.
Na verdade, Luperce tinha o virtuosismo, de tocar em uma velocidade extrema sem cometer erros. Mas a técnica, a capacidade de recorrer a múltiplos recursos de som, era de Jacob.
Deu outra informação: o grande rival de Jacob, na época, era Garoto de quem, até então, só tínhamos ouvido falar por “Duas Contas”, uma das canções preferidas da nossa turma.
O segundo encontro com Jacob foi na casa do meu tio João Sarraf, quando me hospedei em fins de 1969 para prestar vestibular. Tio João tinha comprado o LP do show de Jacob no teatro João Caetano. Jacob tinha falecido dois meses antes. Era um encantamento total do tio, e meu, com “Noites Cariocas” e outros clássicos.
De imediato fui atrás dos outros LPs do mestre, o “Vibrações” “Primas e Bordões”.
Com a vinda para São Paulo, retomei um instrumento da infância, o bandolim, que troquei durante alguns anos pelo violão. E toca a tirar choros e, principalmente, aprender o jeito Jacob de tocar.
A escola Jacob
O Instituto Jacob do Bandolim, com a Rádio Batuta, do Instituto Moreira Salles, produziu um documentário especialíssimo sobre Jacob, graças a quatro craques, Pedro Paulo Malta, Paulo Aragão, Marcílio Lopes e Pedro Aragão.
O documentário avança sobre as origens do extremo rigor com que Jacob encarava o mundo e a música. E enfrenta alguns dogmas, como o de contar que a mãe de Jacob era uma prostituta judia. Jacob morava com ela, que o trancava no apartamento, de onde saía apenas para a escola. Cursou boas escolas, bancadas pelo pai farmacêutico, que o acompanhava à distância.
Provavelmente a mãe incutiu em Jacob a necessidade do rigor absoluto, para enfrentar as vicissitudes da vida.
Um dos capítulos do documentário destrincha a escola Jacob de interpretação, comparando com a de Luperce. Segundo o documentário, Luperce usava apenas o recurso do trêmulo, que trouxe da escola italiana. Faltou dizer que usava como ninguém, nesse exemplo da valsa “A louca do penhasco”.
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Jacob acrescenta um sem número de outros recursos, inclusive assimilando estilos de interpretação de cantores e de outros instrumentos musicais. Definitivamente, reinventa o bandolim. É muito interessante o trabalho desenvolvido por Marcílio Lopes, mostrando como se inspirava em cantores para o fraseado de algumas músicas.
Aliás, Monina Távora, a violonista argentina que deu aula para os dois maiores duos da história – os irmãos Abreu e os Assad – insistia para que ouvissem outros instrumentos, especialmente o piano, para burilar sua maneira de tocar e não ficar preso aos cânones do violão.
Os arquivos de Jacob mostram um ecletismo musical amplo, guardando gravações de Django Reinhardt, do jazz norte-americano, de instrumentistas latino-americanos, de peças da MPB, LPs inteiros do MPB4, de Chico.
Após a morte de Jacob, todo bandolinista tinha que aprender cada macete de seu modo de interpretar, como tocar o Mi, da 4ª corda do bandolim, em acorde com o Mi bemol da 3ª corda. Ou o fraseado de marcar notas com um pequeno volteio, que se consegue prendendo a nota com o indicador e tirando o trinado de uma nota acima com o dedo médio. Ou deslizar o dedo de uma nota a outra, nas passagens mais sentimentais.
O aperfeiçoamento final de Jacob viria no final da vida, quando o maestro Radamés Gnatalli o instiga a estudar mais teoria musical, provavelmente como preparativo para a audição de sua “Suíte Retratos”.
Uma carta preciosa de Jacob a Radamés, de 23 de outubro de 1964, foi publicada por nossa relevante pesquisadora Laura Macedo (clique aqui)
“Hoje minha cantilena é outra: “Mais do que ensaiar, é necessário estudar!”. E estou estudando. Meus rapazes também (o pandeirista já não fala em paradas: “Seu Jacob! O senhor aí quer uma fermata? Avise-me, também, se quer adagio, moderato ou vivace!…” Veja, Radamés, o que você arrumou! É o fim do mundo…”
Trata-se de um momento de corte na obra de Jacob. Os LPs que grava, dali em diante, são o ponto mais alto de sua carreira, comprovando que Jacob morreu efetivamente no auge.
A técnica esquecida
Nas explicações sobre a técnica de Jacob ficou de lado aquela que considerava a grande marca da última fase de Jacob. Era a maneira como se conduzia nos microtons.
Explico.
Quando se dá uma palhetada, a corda vibra, como se fosse um microtom, entre as palhetadas. Experimente acompanhar um choro marcando o ritmo com o pé. Entre uma nota forte e outra, o som fica como que vibrando, marcando microtons. Jacob conseguia entrar nessa dinâmica, de maneira que cada nota forte estava sincronizada com o ritmo produzido pelas vibrações do bandolim.
Eu tinha por hábito diferenciar os grandes novos bandolinistas pela capacidade que tinham de assimilar esse recurso, em geral de maneira intuitiva.
Esse recurso fica mais nítido no choro “Murmurando”, gravado por Jacob no Teatro João Caetano, especialmente na terceira parte quando repete cada nota, a primeira vez bem baixinho, a segunda no tom. A palhetada leve serve para sublinhar o microton.
Aliás, a multiplicidade de sons do bandolim, mencionada no documentário, está presente nessa gravação.
As disputas com Jacob
Durante algum tempo, imaginei que Garoto tinha precedido Jacob, criado, ainda que de forma incipiente, a matriz de sons que Jacob burilaria mais tarde. Isso depois de ouvir “Dinorah”, gravação do final dos anos 40, com vários dos elementos jacobianos. Tempos atrás, o amigo Barao do Pandeiro me alertou de que na verdade, mesmo gravando apenas no final dos anos 40, Jacob já era intérprete constante dos programas de rádio e já tinha, ele próprio, desenvolvido as bases de seu estilo.
O documentário trata com todo respeito Luperce Miranda, situando-o como o grande nome da era pré-Jacob, e Jacob como um continuador. E explora alguns aspectos da personalidade de Jacob, como uma profunda implicância contra eventuais competidores.
Estranhou-se com Luperce quando ele, nos anos 60, em depoimento ao MIS (Museu da Imagem e do Som) disse que Jacob havia sido seu aluno. A implicância foi tal que, na gravação de “A Louca do Penhasco”, nos arquivos de Jacob, ele menciona o nome da música e esconde o do intérprete.
Também tinha uma implicância atroz com Waldir Azevedo e uma menor com Garoto.
Na verdade, na segunda metade dos anos 40 estoura o mercado dos instrumentistas de palheta – solistas de bandolim, cavaquinho, banjo, violão tenor. Nesse período, Luperce tinha voltado para Recife e perde a onda.
Jacob se projeta. Quando a RCA Victor o tira da Odeon, esta contrata Waldir Azevedo para substitui-lo. Outra gravadora contrata Garoto.
Em pouco tempo, Waldir explode com três mega-sucessos, que ganham projeção intrernacional: “Brasileirinho”, “Delicado” e “Pedacinhos do céu”.
Em 1980 ou 81 Deo Ryan lançou um LP com composições inéditas de Jacob. Na época escrevi uma crítica para o Jornal da Tarde onde anotava que, apesar de sua implicância com Waldir, Jacob havia se inspirado em músicas dele em várias das composições inéditas do LP.
Não era plágio. Jacob, assim como Tom Jobim, algumas vezes Garoto, muitas vezes se inspirava em melodias de terceiros para compor suas próprias melodias, todas com vida e personalidade próprias. Mas no LP era nítida a inspiração de Jacob em alguns dos sucessos de Waldir. Na época, recebi uma carta da viúva de Waldir, que havia falecido há pouco, agradecendo o reconhecimento a Waldir.
Por aqueles tempos, estava no bar do Alemão quando apareceu Braguinha, o João de Barro. Chamamos para vir à nossa mesa. Estávamos debatendo justamente as diferenças entre Jacob e Waldir. Perguntamos a Braguinha se ele considerava Waldir muito comercial. E ele?
– Meu filho, a música é para o povo. Eu mesmo acabei de compor a Dança do Jegue.
E passou a rebolar na nossa frente, deixando rubro o Dagô, dono do Bar.
A implicância de Jacob com competidores atingiu o auge em um episódio com Armandinho Macedo, o bandolinista baiano. Novo, com 12 anos, portanto em 1965, o pai cismou de leva-lo para receber as bênçãos de Jacob. Ao ouvir o jovem virtuose, Jacob se desfez dele. Sabia, antecipadamente, que no futuro Armandinho seria seu sucessor.
Foi mais benevolente com os irmãos Assad. Elogiou-os, sabendo que seu instrumento era o violão.
A herança de Jacob foi tão intensa que nenhum dos bandolinistas da década de 70 e parte de 80 conseguiu romper com seu estilo. Déo Rian, Joel do Nascimento, Isaias, Ronaldo, nenhum. A rigor, o único superbandolinista que livrou-se desse estilo foi João Macambira, pernambucano radicado em São Paulo, adepto da escola pernambucana, que tinha em Luperce o grande nome.
Em 1997, em um artigo na Folha, ousei dizer que Armandinho se igualava a Jacob (clique aqui). Julguei que receberia críticas dos velhos chorões. Poucos reclamaram.
De fato, com sua mistureba de rock, música baiana e choro, Armandinho foi o primeiro a romper com o estilo Jacob do Bandolim. E, agora, entra Hamilton de Hollanda trazendo condimentos do jazz ao choro.
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Os sucessores
Daqui a pouco, no Sesc Pinheiros, haverá o show do centenário de Jacob com cinco bandolinistas bastante representativos:
- Hamilton de Holanda, o que trouxe o jazz para o choro e se firmou internacionalmente.
- Danilo Brito, uma espécie de síntese de Luperce Miranda com Jacob, dono de uma técnica inigualável, mas dentro do choro clássico.
- Izaias Almeida, o decano dos bandolinistas paulistanos, herdeiro direto da escola Jacob.
- Fábio Peron: jovem bandolinista que consegue ir da música experiental à pauleira jazificada, passando pelas interpretações dolentes. A grande revelação da última fase do bandolim.
- Miltinho Mori: multi-instrumentista, dono de um talento enorme. O mais injustiçado dos grandes talentos brasileiros. Participou do meu LP “Roda de Choro”. Fiz uma rodada em casa e Armandinho se encantou com sua técnica. Assim como Rafael havia se encantado anos antes com João Macambira, em outro sarau em casa