Pesquisa mostra que insegurança alimentar no país atingiu 116 milhões de pessoas durante a pandemia, cerca de 55% da população
Por Carlos Damascena Becerene, compartilhado de Projeto Colabora
Famílias de baixa renda, principalmente chefiadas por mulheres, foram as que mais regrediram no mapa da fome (Foto: Carlos Damascena Becerene)
Em uma feira livre na Zona Leste de São Paulo, Ariana Rufo Rodrigues, de 37 anos, busca as melhores opções de alimentação para ela e sua filha. Sua ocupação é manicure, mas por conta da pandemia ela passou a trabalhar também vendendo outros produtos para suas clientes, quando tem, tudo para complementar a renda. “A parte mais difícil? Para mim é que eu sou mãe solteira, minha filha ficou sem ir para escola e não tinha com quem deixar. E expô-la ao vírus é difícil”, conta. Beneficiária do Bolsa Família, Ariana recebe ajuda de uma ONG de alimentos e se apega a fé para encontrar respostas nos problemas atuais. “Eu acredito na Bíblia e isso tudo está escrito nela, então a tendência é piorar. O governo precisa favorecer a população, só que eles ajudam de um lado e atrapalham do outro. O auxílio ajuda as pessoas, mas o gás é R$ 100 entendeu?”
Ariana não está sozinha, um relatório da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN) revela que, durante a pandemia do novo coronavírus, 116,7 milhões de brasileiros conviveram com algum grau de insegurança alimentar – seja leve, moderada ou grave.
A segurança alimentar é a certeza que uma pessoa tem condições e que vai conseguir fazer as três refeições do dia em quantidade e qualidade suficiente para se desenvolver de maneira saudável.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar e Covid-19 no Brasil, da Rede PenSSAN, escancarou os números da fome e da desigualdade social em todo o país. O documento, publicado em abril, revela que 55,2% da população brasileira teve alguma restrição alimentar em 2020. São 116.842.556 de pessoas em situação de insegurança alimentar.
Menos da metade da população brasileira, 44,8%, teve condições de realizar todas as três refeições sem sacrificar nenhum item de sua dieta. Ou seja, apenas 94 milhões, dos 211.752.656 brasileiros, não tiveram nenhuma restrição alimentar.
Além da crise sanitária, a pandemia do novo coronavírus também trouxe problemas econômicos. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), por meio da PNAD Continua, atualmente o Brasil tem 14,8 milhões de desempregados, atingindo 14,6% da população. O relatório apresentado pela Rede PenSSAN também trouxe números que corroboram as estatísticas governamentais. Em 2020, pelo menos, um membro de cada família perdeu o emprego, 19% da população, e 49,7% tiveram uma redução da renda familiar.
Ajuda
A presidente da ONG Banco de Alimentos, a economista Luciana Chinaglia Quintão, também vê o aumento no número de famílias necessitadas. “Eu sou economista por formação, então eu acompanho todos esses dados e não tem como não perceber. A questão da renda está intimamente ligada a questão da alimentação, se cai a renda, cai a alimentação e assim aumenta o nível de insegurança alimentar”, conta.
Para ajudar as famílias de baixa renda, trabalhadores informais ou pessoas em situação de instabilidade financeira, em abril de 2020, o governo autorizou um auxílio emergencial no valor de R$ 600. Foram investidos mais de R$ 386 bilhões de reais e mais de 68 milhões de beneficiados. Além do auxílio emergencial, outro programa de transferência de renda, que visa a redução da fome e das desigualdades é o Bolsa Família. Ano passado 68.225.233 de brasileiros foram beneficiados pelo programa, sendo investidos R$ 32 bilhões.
Porém, apesar das tentativas do governo, em 2020, o nível de insegurança alimentar moderada e grave no Brasil está com patamares próximos aos de 2004. A razão disso não é apenas a pandemia do covid-19, mas sim um desmonte que vem ocorrendo desde 2019, começando com a diminuição dos estoques públicos de alimentos.
Segundo a socióloga Maitê Gauto, gerente de programas da Oxfam Brasil, os programas de auxílio não são suficientes para reduzir a fome e a desigualdade no país. “A questão é que a gente precisa de ações conjugadas, as políticas de transferência de renda são fundamentais. Além disso, precisamos de um conjunto de políticas que vão ajudar a fomentar a geração de empregos, reestruturação da economia e apoio às pequenas e médias empresas – o que foi bastante falho em 2020/21”.
O contraste com o lucro do agronegócio
Enquanto em uma linha da cadeia alimentícia a comida não chega à mesa, no outro extremo sobra e lucra. Segundo dados do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, o Valor Bruto de Produção (VBP) está estimado em R$ 1,109 trilhão para esse ano, um aumento de 9,8% em relação ao ano passado.
O VBP são os dados que mostram o desempenho das lavouras e da pecuária durante o ano, é um reflexo dos investimentos, crescimento e ações externas. Apesar de não mostrar o valor real, o qual só é obtido por meio do Índice Geral de Preços (IGP), o VBP serve como uma prévia do que está por vir.
Atualmente, o Brasil é o segundo maior exportador de alimentos no mundo, de acordo com a Organização Mundial do Comércio (OMC). Também é o quarto maior produtor de grãos, atrás de China, EUA e Índia, de acordo com a Embrapa (Empresa Brasileira de Pesquisa e Agropecuária), ligada ao Ministério da Agricultura.
Os números altos e, de certa forma, empolgantes, estão distantes da realidade de milhões de brasileiros, que convivem com a fome. Segundo o inquérito da Rede PenSSAN, cerca de 60% da população que vive em área rural enfrenta algum nível de insegurança alimentar.
Desde 2019, o governo federal deixou de estocar alimentos e esse reflexo pode ser sentido hoje, como conta Maitê Gauto: “A política de abastecimento também foi desmontada, porque a gente deixou de fazer estoque quando os preços estavam mais baixos e não podemos mais jogar de volta no mercado agora que a situação está pior, ficamos de mãos atadas, né?”
Problema antigo
Apesar da pandemia, a insegurança alimentar já vinha aumentando no Brasil. A Pesquisa de Orçamento Familiar (POF) mais recente, de 2018, revela que 36,6% da população sofria algum grau de insegurança alimentar. Em 2014, quando o Brasil saiu do mapa da fome, tínhamos mais de 3 milhões de pessoas em situação de fome, relembra Gauto: “Em 2015, com a crise econômica, começou a ter o aumento do número de pessoas em situação de fome, então nesse ano a gente já tinha 4,8 milhões de pessoas e em 2017 eram 5,2 milhões. O dado mais recente que a gente tinha, até esse relatório da Rede PenSSAN, foi relatório da POF/IBGE, que era referente aos anos de 2017/2018 e que foi lançado em 2019, onde nós já tínhamos um dado alarmante de que havia 10 milhões de pessoas em insegurança alimentar.”
O relatório da Rede PenSSAN sobre a fome mostra, mais uma vez, quem são as pessoas afetadas pela desigualdade no país. O perfil de quem sofre com insegurança alimentar: mulheres, 64%, negros, 59,2%, e com ensino fundamental completo, mas com ensino médio incompleto, 64,3%
“O Brasil é um dos países que mais cobra impostos no mundo e é um dos que menos devolve. Temos um grande potencial, é um país maravilhoso, eu realmente queria ver esse país bombar. É uma questão de inteligência e amor”, conta a presidente do Banco de Alimentos.
Taxação dos lucros
Divulgado no último dia 30 de agosto, pelo Banco Central, o relatório Focus prevê uma expansão menor na economia brasileira nesse ano e a inflação oficial, o Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), deve ficar em 7,27%, em 2020 o índice ficou em 4,52%.
“O aumento dos preços dos alimentos está vinculado à balança comercial. A desvalorização da nossa moeda está fazendo com que seja um melhor negócio exportar nossos produtos, o que faz com que o alimento não fique no mercado interno e isso está fazendo com que a inflação pressione o preço dos alimentos em nosso país”, explica Maitê Gauto.
Para solucionar o problema, a socióloga afirma que não há solução simples e que o aumento do lucro na produção agrícola não significa que as coisas vão melhorar: “Não adianta comemorar o possível ou aparente lucro da produção agrícola, porque essa produção não serve ao mercado interno. O sucesso da produção tem um efeito contrário, pois esse produto é escoado para o mercado externo.”
“O que não dá para fazer é a gente ficar do jeito que está, num desenho macroeconômico que não considera os interesses e impactos que essas medidas têm na população brasileira. Principalmente em uma população mais vulnerável, em nome de uma política neoliberal que privilegie poucos em detrimento de muitos. Temos um mecanismo que até agora não acessamos, que é nosso sistema fiscal, a gente precisa discutir a taxação sobre lucros e dividendos, uma nova tabela no imposto de renda e a taxação das grandes fortunas – os mais ricos vão precisar pagar mais impostos, não dá mais para esse peso ser carregado por quem ganha menos, os mais pobres pagam muito mais impostos, proporcionalmente, do que os mais ricos”, explica.