Por Ana Luiza Matos de Oliveira, economista, Brasil Debate –
Apesar dos avanços alcançados na última década na saúde, a crise expõe a relação promíscua entre o público e o privado no setor, reforçada, entre outros fatores, pelo avanço da cobertura de planos de saúde e pelo não enfrentamento da reforma tributária progressiva, que subsidia o setor privado e tira recursos do SUS
Em tempos de retrocesso político e social, em que é considerado ousado até mesmo defender a Constituição Federal de 1988, a conjuntura mais recente coloca diversos obstáculos à concretização da “saúde como direito de todos e dever do Estado”, segundo a nossa constituição:
1.Emprego e planos de saúde empresariais:
Segundo dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) (Caderno de Informações da Saúde Suplementar 2014, ANS), dos cerca de 26% de brasileiros com planos de saúde, cerca de 67% são cobertos por planos do tipo empresarial.
Com o aumento do desemprego (que já vem ocorrendo), muitos podem perder acesso a esse plano privado e buscar assistência integralmente no Sistema Único de Saúde (SUS) .Toma-se com preocupação, portanto, os cortes na saúde, conjugados ao aumento do desemprego, que podem sobrecarregar ainda mais o SUS.
2.Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) 2016:
Dados do PLOA 2016 mostram que o orçamento do Ministério da Saúde cairá de 2015 para 2016, como estratégia do ajuste fiscal: estima-se que será 12% menor (R$103 bi em 2015 contra R$90 bi em 2016), se mantidos os valores.
Deve-se considerar, no entanto, que o orçamento previsto para o ano de 2015 também sofreu diversos cortes ao decorrer do ano, como em maio/2015.
3.Ministério da Saúde na reforma:
Dirigentes da Abrasco criticam o “uso do Ministério da Saúde como moeda de troca política” e ressaltam que o jogo de interesses coloca o SUS em sérios riscos, ainda mais pelo perfil conservador do novo ministro, que pode significar a suspensão de importantes debates e ações de programas e políticas públicas em prevenção ao HIV/Aids/DSTs e de conscientização e promoção da saúde.
4.Cortes no Farmácia Popular:
Medicamentos representam o principal gasto em saúde, principalmente nas famílias de menor renda. Assim, o Programa Farmácia Popular do Brasil disponibiliza contraceptivos, fraldas geriátricas, medicamentos indicados para o diabetes, hipertensão, osteoporose, rinite, asma, Parkinson, glaucoma, entre outros subsidiados em duas vertentes: a Rede Própria estatal, presente desde a criação do programa em 2004, e a “Aqui Tem Farmácia Popular” (ATFP), estabelecida em parceria com o comércio farmacêutico, a partir de 2006 .
O Programa se inclui em uma das ações do Plano Brasil Sem Miséria, com o objetivo de elevar a renda e as condições de bem-estar da população. No entanto, segundo o PLOA 2016, o programa sofrerá um corte de R$ 578 milhões e garantirá apenas a gratuidade dos medicamentos ligados ao “Saúde não tem preço” para asma, hipertensão e diabetes. Está previsto manter a rede própria da Farmácia Popular.
5.Continuidade e ampliação da DRU
A Desvinculação de Receitas da União (DRU) permite ao governo federal usar livremente 20% de todos os tributos federais (em especial as contribuições sociais) vinculados por lei a fundos ou despesas. Na prática, causa diminuição de recursos para vários programas sociais, como atividades fins das áreas de saúde, previdência e assistência social.
A DRU está em vigor até 31 de dezembro de 2015, mas existe uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 87/2015 estendendo o instrumento até 2023, com algumas alterações na regra atual.
6.Subfinanciamento da saúde e capital estrangeiro – Lei 13.097/2015 e EC 86:
Mário Scheffer aponta que os fundamentos políticos e econômicos do SUS foram abalados no início de 2015, com a aprovação da Emenda Constitucional 86, que cristaliza o subfinanciamento do SUS, e da Lei nº 13.097, que permite a participação de empresas e do capital estrangeiro nas ações e cuidados à saúde, sem restrições presentes na Lei 8.080/90 (Lei Orgânica da Saúde) e em um formato de abertura ao capital estrangeiro ainda mais radical do que as discussões que já corriam no Legislativo.
Para Maria Angélica Borges dos Santos (ENSP/Fiocruz), com a Lei 13.097, provavelmente ocorrerá não a criação de capacidade instalada, mas aumento dos lucros especialmente por meio de fusões e aquisições.
Assim, é previsível um aumento de preços, inicialmente afetando a saúde suplementar, mas abre-se a possibilidade de que o capital estrangeiro entre no SUS, devido à ampla base de prestadores privados integrando o sistema público.
Ainda, segundo Maria Angélica, uma unanimidade na literatura é que o investimento estrangeiro acentua as desigualdades de acesso aos sistemas de saúde: Índia e Turquia não evidenciam nenhum avanço em seu sistema de saúde, no sentido de ampliação do direto à saúde, com a entrada de capital estrangeiro.
Apesar dos inúmeros avanços alcançados na última década na saúde, este momento de crise expõe a relação promíscua entre o público e o privado na saúde, reforçada pelos financiamentos de campanha, pelos interesses escusos que permeiam as OSs (Organizações Sociais de Saúde), Oscips (Organizações da Social Civil de Interesse Público) e outros em seu papel de substituição do Executivo desde os anos 1990, pelo crescimento da 18% para 26% da cobertura por planos de saúde entre 2003 e 2014, pelo não enfrentamento da reforma tributária progressiva (e os mecanismos de subsídio ao setor privado no Imposto de Renda, por exemplo), entre outras questões.
Crédito da foto da página inicial: Fenam