Por Franklin Frederick, publicado em Jornal GGN –
‘As idéias que sustentam o nosso movimento pela completa liberdade e dignidade do povo não podem ser aprisionadas, pois elas se encontram no povo, em todo o povo, onde quer que ele esteja. Enquanto o povo der vida às idéias de liberdade e dignidade, não haverá prisões que possam impedir o nosso movimento’. Huey Percy Newton
Este texto é uma continuação do artigo ‘Os Estados Unidos e o fascismo na América Latina’.
Vivemos hoje no Brasil dois fenômenos interligados: um golpe de estado e tendências fascistas cada vez mais presentes na sociedade. Na história do país, o momento mais recente em que estes dois fenômenos surgiram em conjunto foi no golpe de 64, portanto uma reflexão sobre aquele período pode trazer elementos importantes para compreender melhor a situação atual e construir um movimento capaz de derrotar o golpe e deter o fascismo que se alastra.
O papel dos Estados Unidos da América na gênese tanto do golpe quanto deste novo fascismo foi e continua sendo fundamental, como procurei demonstrar no artigo anterior, onde citei a obra de Noam Chomsky e Edward S. Herman ‘The Washington Connection and Third World Fascism’. Trata-se agora de analisar com mais profundidade as relações do Brasil com os EUA no golpe de 64 e o livro de Chomsky e Herman contém muitas passagens reveladoras sobre este tema:
“As elites fascistas desnacionalizadas de países como o Vietnam do Sul antes de 1975 e do Brasil pós 1964 tinham como base interna uma fraca minoria de interesses conservadores e compradora de produtos importados; e uma base de suporte externa no ‘establishment’ econômico e militar estrangeiro. Sem nenhuma idéia econômica própria, estas elites recorrem a uma adesão dogmática ao livre mercado (boa o suficiente para o super-poder que as elites buscam imitar) e abrem as portas para o investimento estrangeiro como sendo o caminho para a prosperidade. Economicamente analfabetas, fingindo ser tecnocratas ‘sem partido’ que vão limpar a corrupção, estas elites são o instrumento perfeito da corrupção mesma. De estado-cliente em estado-cliente, da Argentina ao Zaire, a instalação de juntas militares trouxe consigo um novo poder e papel para os interesses econômicos estrangeiros e estabeleceu a corrupção como sistema”.
Este parágrafo descreve perfeitamente as elites fascistas do Brasil de hoje, salvo quanto às juntas militares, substituídas por um governo golpista de coalizão entre a grande imprensa, o poder judiciário e a maior parte do congresso. O objetivo continua o mesmo: abrir as portas para o investimento estrangeiro, ou seja, na prática, entregar as riquezas brasileiras à iniciativa privada internacional. Deve-se lembrar aqui que o fascismo latino-americano e brasileiro é sempre um fascismo SERVIL em relação aos interesses do Império, que defende um projeto neocolonial onde as elites fascistas voltem a ter o papel de dominação que as elites coloniais detinham, como descrito no artigo anterior. Sem esta chave é impossível compreender o real objetivo do projeto do novo fascismo no Brasil.
Sobre a preparação para o golpe de 64, Herman e Chomsky escreveram:
“(…) a CIA coleta informações que são utilizadas de várias maneiras. É muito interessante ver a extensão com que a CIA repassa regularmente informações aos brutamontes da direita e aos que conspiram contra o governo constitucional. Os militares chilenos recebiam listas de ‘inimigos’ e a direita brasileira era constantemente alimentada com informações antes do golpe (de 64) (…)”.
“Centramos nossa atenção no Brasil precisamente porque se trata de um país grande e relativamente poderoso. Apesar disso, a CIA foi capaz de subornar seus jornalistas, subsidiar seus políticos, conspirar junto com facções militares e se engajar em amplas campanhas de propaganda – em resumo, a CIA pôde virtualmente ignorar a soberania deste grande a teoricamente independente país. O problema, claro, é que o Brasil não era uma nação independente – a penetração dos EUA já era enorme nos anos 60 e os líderes dos Estados Unidos agiam como se possuíssem de fato um poder de veto sobre a economia e a política externa do Brasil. O exército brasileiro e muito da economia do Brasil já estava ‘desnacionalizada’, com uma forte ligação e relações de dependência com os Estados Unidos que, por sua vez, controlavam, entre outras coisas, mais ou menos a metade da indústria de propaganda e uma parcela significativa de uma imprensa de massa em rápida expansão”.
Que a CIA ou outras agências dos Estados Unidos continuem a controlar a grande imprensa no Brasil e estejam por trás das informações que levaram às denúncias de corrupção na Petrobrás e estejam, portanto na origem da operação Lava Jato com o claro objetivo de destruir o PT e o Ex-Presidente Lula, é um fato reconhecido e muito já foi publicado sobre isto. O ‘modus operandi’ do golpe é o mesmo utilizado em 64 e descrito por Herman e Chomsky, porém muito mais sofisticado, sem utilização da força militar, mas sim da ação combinada do parlamento, do judiciário e do poder de manipulação da grande imprensa e das redes sociais, com técnicas e instrumentos que não existiam em 1964. A razão fundamental para o golpe atual é o fato de os governos Lula terem iniciado um desenvolvimento econômico INDEPENDENTE do Brasil, o verdadeiro crime aos olhos do Império, que então planejou , conduziu e apoiou os passos que levaram ao golpe, cuja principal função é justamente a de destruir qualquer tentativa de desenvolvimento nacional.
Tudo isso leva a uma situação muito mais complexa que a de 64. O golpe atual é mais articulado e a cooptação de setores da sociedade brasileira é muito maior. A mentalidade fascista que alimentou e sustenta o golpe, graças a estas novas técnicas de manipulação da grande imprensa e das redes sociais, pôde se alastrar muito mais, tornando a resistência mais complexa e difícil. É urgente e imprescindível desenvolver novas formas e estratégias de combate ao golpe, aos seus objetivos e à mentalidade que o sustenta. Creio que uma possível fonte de inspiração para a resistência ao golpe no Brasil se encontre no movimento que talvez com mais clareza e contundência tenha enfrentado o fascismo dentro do próprio território dos EUA: o movimento negro dos anos 60/ 70.
A citação do início que poderia ser uma referência à prisão do Ex-Presidente Lula é na verdade de uma carta escrita em 1969 e dirigida a todos os negros que se encontravam naquele momento em prisões americanas, na grande maioria das vezes devido ao racismo institucionalizado então vigente, em muitos casos justamente por lutarem e desafiarem este mesmo racismo institucional. O autor da carta, Huey P. Newton, foi um dos fundadores do Partido Pantera Negra – Black Panther Party. Nesta mesma carta ele escreveu:
“A beleza e a dignidade do homem residem no espírito humano que faz dele mais do que um simples ente físico. Este espírito não deve jamais ser suprimido pela exploração por outros. Enquanto o povo reconhecer a beleza do seu espírito humano e lutar contra a opressão e a exploração, ele estará carregando consigo uma das mais belas idéias de todos os tempos. (…) Uma prisão não pode ser vitoriosa porque muros, barras e guardas não podem conquistar ou sufocar uma idéia”.
No Brasil tentam, hoje, nos fazer esquecer da beleza do espírito humano e da necessidade de lutar, sempre, contra a opressão e a exploração dos seres humanos.
Em outra ocasião, Huey P. Newton escreveu:
“A sacralidade do ser humano e de seu espírito requer que a dignidade e a integridade humanas sejam respeitadas por todos os outros seres humanos. Não aceitaremos nada menos que isso (…)”.
No Brasil, hoje, avilta-se a dignidade e a integridade humanas a cada dia. E o próprio Governo declara, pelos seus atos, que a maior parte da população brasileira, aquela mais pobre, aquela descendente dos escravos que com o seu trabalho e seu sofrimento ajudaram tanto a construir este país, sequer tem direito a ser tratada com dignidade. Sua integridade é permanentemente violada, os jovens são assassinados ou conduzidos ao crime, as mulheres violentadas, condenadas ao subemprego – quando encontram – ou à prostituição. O Presidente que tentou restituir a dignidade e a integridade a esta parte da população, o principal veículo de ‘uma das mais belas idéias’ da humanidade no Brasil contemporâneo, Lula, está preso. Não podemos mais aceitar isso.
Huey P. Newton também escreveu:
“Não há um só governo fascista ou reacionário hoje (1970) que pode se manter sem o apoio do imperialismo dos Estados Unidos. Portanto, nosso problema é internacional (…)”.
Da mesma maneira o golpe no Brasil se insere num contexto internacional e compreende-lo é fundamental para a resistência. Os governos Latino-Americanos que mais fazem pela dignidade e integridade de seus povos, Bolívia e Venezuela, são justamente os mais vilipendiados pela grande imprensa internacional. A luta deles é também a nossa.
Uma das pessoas para quem Huey P. Newton escreveu a carta mencionada foi George Jackson que passou a maior parte de sua vida na prisão, onde morreu assassinado aos 30 anos de idade, em 1971. As cartas enviadas da prisão por George Jackson foram publicadas com o título de ‘Soledad Brother’- Irmão Soledad ( Soledad sendo o nome da prisão onde Jackson passou o maior tempo). Estas cartas são um testemunho excepcional, descrevendo a luta de um ser humano por manter sua dignidade e integridade dentro de um sistema brutal. Além de enfrentar a violência cotidiana do racismo dentro da prisão, Jackson ainda conseguiu educar a si mesmo e desenvolver uma impressionante capacidade de análise política. Em uma de suas cartas ele escreveu:
“Homens negros nascidos nos Estados Unidos e suficientemente afortunados para viver além da idade de 18 anos, são condicionados a aceitar a inevitabilidade da prisão”.
Este parece ser cada vez mais o caso do Brasil atual – intencionalmente.
Mas é em ‘Blood in my eye’–Sangue em meu olho – seu livro publicado postumamente em 1972 – que se encontra uma análise do fascismo que pode ser muito útil para a compreensão do mesmo fenômeno no Brasil:
“De fato, historicamente, (o fascismo) provou ter três fases diferentes. Uma, ‘fora do poder’, que tende quase a ser revolucionária e subversiva, anti-capitalista e anti-socialista. Uma outra fase ‘no poder, mas não seguro’-este é o aspecto sensacionalista do fascismo que podemos ver em filmes ou ler em literatura barata, quando a classe dominante, através de seu regime instrumental, é capaz de suprimir o partido de vanguarda do movimento do povo e dos trabalhadores. A terceira fase do fascismo existe quando este está ‘no poder e seguro’. Durante esta fase alguma divergência pode até ser permitida”.
No Brasil nos encontramos exatamente nesta segunda fase que, ainda segundo Jackson, seria característica na América Latina:
“É de uma enorme importância não confundir estas três fases do fascismo quando estudamos a América Latina. A segunda fase (no poder, mas não seguro) é a parte realmente significativa de todo o episódio fascista. Vários regimes falharam em aumentar a demanda interna ou tirar do poder a tradicional elite agrária em favor dos interesses industriais incipientes; isto leva os governos à dependência do comércio e investimentos exteriores para máquinas, para armas com que controlar os movimentos populares e matéria prima para alimentar suas indústrias leves e seu pequeno mercado de bugigangas. Consequentemente é nessas áreas que observamos a mais clara dicotomia em injustiça sócio-econômica. (…) Uma estranha combinação das duas primeiras fases do fascismo. Sem a massiva contribuição militar dos Estados Unidos, dos esquadrões da morte à maneira da Gestapo e sem o mais intenso terror por parte da direita, as armas da libertação já teriam enchido as ruas e as florestas de sangue. É importante nunca perder de vista o status de neo-colônia da América Latina. Uma vitória dos exércitos de libertação dos povos seria também uma vitória sobre os seus mestres coloniais na metrópole. Os regimes fantoches dessas áreas não podem estabelecer-se firmemente na fase três do arranjo fascista por duas razões. O povo está disposto a usar armas e está aprendendo a utilizá-las com mais eficiência; e porque estes regimes são imitações, não são autóctones, eles não refletem os reais interesses das elites nacionais, mas apenas das elites dominantes à serviço da nação imperial, os EUA”.
O contexto internacional é outro, não temos – ao menos por enquanto – os esquadrões da morte nas ruas e a’contribuição’ dos EUA para a manutenção ou imposição de governos autoritários na América Latina deslocou-se do uso das forças militares para o uso do ‘lawfare’ como o caso do Ex-Presidente Lula explicita muito bem. Mas a direita continua – é o seu papel – sua campanha de terror no Brasil como na Venezuela, procurando sempre intimidar as forças de resistência e calar a voz do espírito humano. Mas por trás dos atos de violência ou intimidação dos fascistas tupiniquins, dando-lhes segurança e desenvoltura, está sempre a sombra do poder imperial maior e sua ameaça de brutalidade total. O que mudou foi a capacidade do Império de utilizar instrumentos mais sutis de dominação, acompanhando uma necessidade crescente de legitimação desta mesma dominação através de governos aparentemente ‘legais’. Deste modo, os capitalistas neoliberais podem continuar a sua obra de exploração com ‘boa consciência’ e a grande imprensa internacional servil pode louvar com mais facilidade as ‘conquistas’ do mercado. Com tanques na rua e gente morrendo fica um pouco mais difícil legitimar certas coisas. Daí a importância do conceito de ‘fascismo amistoso’ desenvolvido por Bertram Gross citado no artigo anterior. Esta versão moderna do fascismo já é a realidade do Império, que procura agora retomar seu controle sobre a América Latina. Sobre o fascismo nos EUA George Jackson escreveu:
“O fascismo se estabeleceu de uma maneira muito bem disfarçada neste país (os EUA). Ele se sente tão seguro que os líderes nos permitem até a luxúria do protesto. Se o protesto for muito longe, eles logo mostrarão sua outra face. Portas serão arrombadas à noite, metralhadoras e balas se tornarão os meios de troca”.
Os assassinatos de Malcolm X, Martin Luther King, Medgar Evers e tantos outros nos EUA naquela época provam a veracidade da afirmação de Jackson. E o atual movimento ‘Black lives matter’ nos Estados Unidos, apesar de inegáveis avanços, mostra que a racismo por lá ainda é uma dolorosa realidade, sem mencionar que a população carcerária dos EUA é uma das maiores do mundo, com 2.3 milhões de pessoas, na maioria jovens e negros. No Brasil, a violência crescente e os assassinatos de Marielle Franco e de seu motorista são a prova de que a ameaça fascista, contendo em si o racismo e a homofobia, é parte também de nossa realidade e cumpre o papel fundamental de apoiar as formas mais sutis de dominação. A combinação desta violência com o ‘lawfare’ é a nova forma de dominação exercida pelo Império. Temos que resistir, criar estratégias de defesa, ampliar as alianças, lutar com mais eficiência, recuperar a dignidade e a integridade da nação brasileira. E impedir, seja como for, que nos sufoquem o espírito. Ou como tão bem expressou George Jackson:
“Liberdade significa calor e abrigo contra a severidade dos elementos da natureza. Significa comida, não refugo. Significa verdade, harmonia e as condições sociais que decorrem destas. Significa o melhor atendimento médico possível sempre que necessário. Significa emprego que seja razoável e que coincida com as necessidades e sentimentos individuais. Nós conquistaremos esta liberdade, mesmo ao preço da guerra total”.