Os filhos do coronavírus

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Por Agostinho Vieira, compartilhado de Projeto Colabora – 

Especialistas alertam para os riscos que crianças e jovens, especialmente os de baixa renda, correm por conta dos efeitos econômicos e psicológicos da covid-19

Em Seul, na Coréia do Sul, jovens fazem uma prova de qualificação ao ar livre para evitar a contaminação com a covid-19. Foto Yonhap/AFP

O historiador britânico Eric Hobsbawn aponta a Primeira Guerra Mundial como o marco que sinaliza o fim do século XIX. Um exemplo claro da diferenciação entre o tempo cronológico e o tempo histórico. Com a pandemia da covid-19 não será diferente. Ela marca, com certeza, o melancólico fim do século XX. Frases que são repetidas hoje talvez tenham sido frequentes também em 1917 ou 1918, como: “o mundo como conhecemos não será mais o mesmo”, “a economia mundial está em frangalhos”. “as pessoas vivem isoladas, com medo de sair às ruas”, “o número de mortos lá fora não para de crescer”. A situação era tão assustadora que escritora americana Gertrude Stein cunhou a expressão “Geração Perdida” para definir o grupo de crianças e jovens que viveu naquela época e passou pelos “Loucos Anos 20” até a Grande Depressão de 1929.




O desenvolvimento das crianças no Brasil, que hoje já é ruim, tende a ficar pior. Estamos em um momento muito difícil, com uma crise econômica grave e um desemprego elevado. As crianças estão isoladas, em quarentena, vivendo, muitas vezes, em ambientes de violência doméstica, com efeitos emocionais e psicológicos óbvios

Naércio Menezes
Economista

É verdade que também passaram por lá alguns nomes brilhantes como Ernest Hemingway, F. Scott Fitzgerald, T.S Eliot e a própria Gertrude Stein. Mas aquele foi, sem dúvida, um dos momentos da história mais repleto de dor, sofrimento e dúvidas. A pergunta que cabe agora é: será perdida também essa geração de jovens, adolescentes e crianças que virá depois da covid-19? Quem são ou como serão os filhos do coronavírus? Para o educador Francisco Morales, essa geração de “coronials” virá com pressupostos, valores e formas de ver a vida bastante diferentes.

“Muitos desses jovens estão passando por experiências marcantes, estressantes, diferenciadas. Talvez tenham perdido um parente ou um amigo. Seus pais podem estar agora sem emprego ou sofreram com o fechamento dos seus negócios. Alguns virão de relações familiares conturbadas, violentas. Outros talvez até saiam fortalecidos por um convívio familiar sadio, pela recuperação da intimidade do lar, o aproveitamento do tempo e o crescimento pessoal”, explica Morales.

Menino palestino dirige o carro elétrico feito à mão chamado de "corona" que seu pai Fawzi al-Natsheh construiu na cidade de Hebron, na Cisjordânia. Foto Hazem Bader/AFP
Menino palestino dirige o carro elétrico feito à mão chamado de “corona” que seu pai Fawzi al-Natsheh construiu na cidade de Hebron, na Cisjordânia. Foto Hazem Bader/AFP

Aliás, um erro muito comum nessas tentativas de desenhar cenários de futuro é acreditar que os impactados, mesmo os do coronavírus, sejam todos iguais e que serão afetados, física ou psicologicamente, da mesma maneira. O economista Naércio Menezes, do Insper, da USP e do Núcleo Ciência pela Infância, está preocupado com o “estresse tóxico” que deve atingir, principalmente, as famílias de baixa renda no Brasil.

O “estresse tóxico” é um termo cunhado pelo Centro de Desenvolvimento da Criança, da Universidade Harvard, nos Estados Unidos. Ele foi criado para classificar possíveis riscos de traumas para o desenvolvimento das crianças. De acordo com este Centro, há três tipos diferentes de resposta ao estresse: a positiva, a tolerável e a tóxica, dependendo do efeito que essa reação tem sobre o corpo. A resposta tóxica ao estresse pode ocorrer quando uma criança vivencia uma dificuldade forte, frequente e prolongada, sem apoio adequado de um adulto ou de um especialista. Essa resposta pode saturar o cérebro da criança e interromper o seu desenvolvimento, especialmente durante a primeira infância.

“O desenvolvimento das crianças no Brasil, que hoje já é ruim, tende a ficar pior”, explica Naércio. “Estamos em um momento muito difícil, com uma crise econômica grave e um desemprego elevado. As crianças estão isoladas, em quarentena, vivendo, muitas vezes, em ambientes de violência doméstica, com efeitos emocionais e psicológicos óbvios”, explica.

O economista lembra que, apesar da redução da pobreza no Brasil na última década, o país ainda apresenta um grande contingente de crianças vivendo sob condições precárias, com potenciais riscos para a sua saúde e o seu desenvolvimento. Hoje, 29% das crianças brasileiras de zero a seis anos, vivem em domicílios pobres, com renda mensal per capita média de R$ 250,00. Mais de 40% estão em residências que têm alguma restrição de acesso a saneamento. E cerca de 23% habitam moradias consideradas inadequadas. Muitas delas sem banheiro, cujas paredes foram construídas com materiais não duráveis, com excesso de moradores nos quartos ou que gastam uma parcela muito grande da sua renda com aluguel. Além disso, cerca de 61% do total de crianças vivem sob alguma dessas três situações e 6,5% delas sob as três ao mesmo tempo.

Outra preocupação de Naércio Menezes é com a interrupção dos exames pré-natal e pós-natal das gestantes em tempos de quarentena por conta da covid-19. Ele teme que isso provoque um recrudescimento nos casos de mortalidade infantil e mortalidade materna. A psicóloga perinatal e parental Cíntia Aleixo, responsável pelo site “Possibilidades Maternas”, também está preocupada, especialmente com o estresse pós-traumático que, segundo ela, virá depois da pandemia, para adultos e crianças: “As pessoas, sem dúvida, estão vivendo uma momento de ansiedade alta, uma espécie de luto generalizado, uma sensação de perda dos amigos, do contato físico, do emprego. Muitos, no entanto, vêm enfrentam bem a situação, se aproximando das famílias, praticando mais a empatia e a tolerância. O problema maior, na minha opinião, virá depois, com os sinais de irritabilidade, insônia e angústia provocados pelo estresse pós-traumático”, explica.

Se hoje já é difícil prever o que vai acontecer nos próximos sete dias, mais ainda é determinar o que acontecerá nos próximos sete meses ou sete anos. É sabido que crises como esta podem levar à raiva e ao medo. Na relação entre as pessoas ou mesmo entre comunidades e países. Essas emoções muitas vezes se transformam em estigmatização e discriminação. Epidemias, pandemias e choques ambientais podem fazer com que as sociedades se tornem mais “egoístas”, se fechem, elegendo líderes ainda mais autoritários e mostrando preconceito em relação ao que é diferente. Tudo isso gera insegurança e incerteza.

A pandemia da covid-19 encerra a era do consumo sem freios, da tecnologia a serviço do mercado, do individualismo sem culpa, da desigualdade sem vergonha e da destruição ambiental sem medir consequências. Erros graves que nos trouxeram até aqui. Podemos mudar, aprender com o passado e fazer tudo diferente. O problema é que o diferente nem sempre é melhor. Os últimos cem anos estão aí para mostrar o que fizemos com nossas escolhas. Que os filhos do coronavírus, com suas máscaras e luvas, nos levem para um lugar melhor.

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