Os gatos-pingados no Engenho de Dentro

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Quem acompanha as crônicas da coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, sabe que ele, o cronista, sempre nos leva para algum lugar, uma feira, um cinema, uma cidade… Hoje César nos leva ao Museu do Inconsciente.

Minha tentação por trocadilho me leva a dizer que seu texto é uma loucura, mas, como dizia o maluco beleza, Raul Seixas, “prefiro ser louco num mundo em que os normais fazem bombas”. E, continuando com Raulzito, “quando acabar, o maluco sou eu”.




No final da crônica do grande César, não o Nero, aquele louco que incendiou Roma, vai um vídeo com a música de outro Maluco Beleza amigo do Raul, Sérgio Sampaio, cantada por Luiz Melodia, também considerado louco neste mundo de “sãos” beligerantes. Música, que remete justamennte ao hospital no qual está o Museu do Inconsciente, o Engenho de Dentro, “Que Loucura”. (Editor maluco, Washington Aráujo)

“Eu não estava puro quando visitei o Museu do Inconsciente esta semana: já tinha assistido aos documentários sobre o legado de Nise da Silveira, se não me engano, no Itaú Cultural Play. Não sei por que o material não está mais disponível no streaming do Itaú. O jeito é procurar os filmes completos ou em parte no ITaYouTube.

Uma exposição tão bacana com obras de valor estético inestimável ficar meio escondida é algo que não dá para entender direito. É de coçar a cabeça. Fui atrás dela que nem se vai atrás de trio elétrico? Nem tanto. Fui cheio de receios mas fui. E levei a família.

Eu tenho medo da loucura. Bad, bad trips. Medo grande, profundo, talvez mais por ter com ela uma relação de intimidade do que propriamente de desconhecimento. Eu tenho um pé em cada canoa, sem folclore nenhum. A loucura é capaz de se enroscar feito um gato nas minhas pernas? Não sei. Não sei, não duvido.

Só sei que gente como Nise da Silveira me enche de orgulho e de vergonha. Sinto-me orgulhoso por ter nascido no mesmo país que ela e envergonhado por não ter a coragem que ela teve de enfrentar os poderosos, enfrentar o que quer que fosse em prol dos seus pacientes.

Para chegar até o museu, adentro o hospital pelo portão de pedestres e depois percorro alamedas sob os olhos vigilantes e preguiçosos de muitos gatos. Apesar de se topar aqui e ali com desenhos nos muros, não se abranda a sensação incômoda de uma incerteza em cada passo. Por um momento, pensa-se que é mais difícil entrar do que sair de lugares assim.

O ar me falta embora a caminhada não seja íngreme. Apesar do colorido de alguns desenhos e tal, duas cores predominam: o cinza do concreto e o vermelho-barro dos tijolos à mostra, os ossos das paredes descascadas. E os gatos.

Recentemente eu trouxe da casa do meu irmão o magnífico “A história da loucura”, de Michael Foucault, livro do qual só li uma parte, a inicial, a que se refere à “nave dos loucos”. Imaginem que na Europa havia uma embarcação apinhada de gente desviante que ia de porto em porto impedida talvez de descer à terra firme. Este livro está na fila de leitura há tempos, outros lhes passaram a dianteira com se tivessem furado a fila do SISREG. Quando o lerei?

Sei também que Aldir Blanc fez estágio em psiquiatria por aqui, neste mesmo hospital do Engenho de Dentro, na década de 1960, isto quer dizer, em épocas nem tão passadas.

Certa vez Gilberto Vieira me convidou para participar do “Desloucura Suburbana”, bloco da patota do Hospital do Engenho de Dentro. Não fui, apesar de saber que folia, etimologicamente falando, é um tipo de loucura permitida: Fool, Folly, Folia, Folião.
Cheguei a fazer samba justificando a minha ausência, um samba bonito e triste que começava mais ou menos assim:

Era pra ter ido mais Gilberto
Conferir ali de perto
Me esbaldar em tal folia

Só quem é lelé da cuca, meu sinhô
Pode viver de poesia

Era pra ter visto assim de loco
A força daquele bloco


Como disse, o lugar é cheio de gatos que passam por nós a todo instante, tranquilos, tranquilos e vigilantes. Nise da Silveira percebeu que os animais eram fundamentais figuras para os seus pacientes. Ao contrário dos que pensavam que todos eles os loucos eram incapazes de dar afeto, de cuidar, de tomar conta, de acudir, ela aprendeu com os livros e com a experiência cotidiana de que nós somos capazes de muitas coisas, apesar de nossas limitações. Às vezes, acrescento, até mesmo em decorrência de nossas limitações. De perto ninguém é normal, é quase certo. Há gradações nessa paleta de cores que é a vida.

Eu esquecera o nome do artista cuja obra mais me impressionou. Fui no Google, achei: Lucio Noeman. Na exposição há duas reproduções de obras dele: uma antes da lobotomia a que foi submetido; outra, depois. A família permitiu que ele fosse lobotomizado, talvez confiando em uma melhora significativa de suas crises.

Quando se confrontam as duas obras, a inferência é clara: a distinção entre as duas nos mostra que a lobotomia fez mais que apaziguar os demônios de Lucio: levou consigo a força criativa, o engenho, a riqueza de detalhes de suas esculturas, deixando no lugar um esboço quase amorfo que, mais que nunca talvez, representa a imagem de seu interior: a de alguém que perdeu a manha: o vazio, sendo coberto por uma sacola de supermercado, quase um borrão.

É difícil se esquecer disso. Dessa vez eu consegui sair do labirinto. Bad trip quase de tripas pra fora. Fui-me embora, eu e minha família de gatos-pingados.”

Show de Luiz Melodia para o Rio Música InCena 2010, Teatro Clara Nunes – RJ. Música: “Que Loucura” (Sergio Sampaio). Músicos: Renato Piau: violão, Charles Peixoto: violão, Alessandro Cardozo: cavaquinho

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