Fiz este texto “inspirado” em duas coisas ligadas à Educação: os pastores intermediando de maneira corrupta o destino das verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – mais uma “não corrupção” do governo Bolsonaro – e a tão falada (por gente metida a besta) meritocracia.
Por Mouzar Benedito, compartilhado de Construir Resistência
No início dos anos 1980 fui com amigos fazer um trabalho no município de Touros, no litoral do Rio Grande do Norte. Contratados pelo Ministério da Educação, com uma grana doada pelo Banco Mundial, nós devíamos fazer, entre outras coisas, uma cartilha destinada aos filhos de pescadores.
Uma das minhas funções era conversar com a população, para fazer a cartilha de acordo com o vocabulário local. A que usavam lá não tinha nada a ver com a região. A linguagem e o vocabulário, eram do Sudeste do Brasil, onde, por exemplo, as crianças das cidades chamam o pai de papai, e a mãe de mamãe. Nada a ver com a linguagem nordestina, onde elas chamam os pais de painho e mãinha.
O conteúdo, então, era pior ainda. A cartilha e os livros escolares de lá, quando iam falar sobre frutas citavam como exemplos a maçã, pera, e outras frutas de regiões mais frias, em vez de banana, caju, maracujá e outras frutas de clima tropical, comuns do Nordeste.
Os animais mamíferos dos livros escolares eram urso, tigre e outros desse tipo… nada de jegue, cavalo, bode, cachorro… comuns na região.
Bom… Chegamos a Touros num dia e no outro seguimos a pé para o povoado de Carnaubinha, a uns cinco quilômetros de distância. Éramos três: o Taunay, o Fernando Passos e eu. Todos muito altos para os padrões locais, onde pouca gente tinha mais de um metro e sessenta de altura. O mais baixinho entre nós três era eu, com 1m79 (não tenho mais isso, encolhi uns centímetros). Os outros dois beiravam 1m90.
E nós éramos barbudos, com muita barba mesmo, espessa e grande, enquanto os homens de lá tinham barba rala. O Taunay e eu com barba bem preta, e Fernando com barba branca, apesar de ser novo também.
Quando entramos no povoado, percebemos que todo mundo nos olhava com ar de espanto. Meus dois colegas foram à a escola, conversar com uma professora, e eu fui a uma venda, começar o meu trabalho por ali. Nada melhor para puxar uma boa conversa e entender o modo de falar do povo dali do que puxar assunto compartilhando uma cachacinha.
Mais tarde, quando peguei intimidade com algumas pessoas, me disseram o seguinte: “Nós pensamos que vocês eram os homens da bola”.
Que diabo é isso de homens da bola? Disseram que três dias antes apareceu uma bola no céu, com três cores: vermelho, amarelo e verde, se não me engano. No dia seguinte, quando amanheceu, tinha só duas bolas, a amarela e a vermelha, digamos. E depois, só uma bola… E naquela manhã não tinha mais nenhuma bola.
Estava todo mundo assustado, achando que era um disco voador, a que chamavam bola. Logo na manhã que aquilo sumiu de vez, aparecemos três homens “grandões” e barbudos, como era incomum ali. E levávamos um monte de aparelhos, que eram na verdade gravadores e máquinas fotográficas. Só podíamos ser passageiros daquele suposto disco voador. O Fernando de barba branca, era o pai; o Taunay e eu, os filhos. Passei a chamar o Fernando de Painho, desde aquele dia.
Procuramos informações sobre a tal bola e não havia muita clareza no que nos disseram, mas concluímos que era um balão meteorológico de três fases, cada uma de uma cor, lançado da Barreira do Inferno, que é perto dali. Uma coisa típica da ditadura: não informaram a população, que ficou meio apavorada com aquela bola no céu, perdendo um pedaço a cada noite.
Durante nossa estada lá, com as informações que recebemos antes da viagem, analisamos um pouco o destino da grana do Banco Mundial destinada ao projeto, um milhão de dólares (o dólar valia muito mais do que hoje em dia) e a nossa própria função nessa história. Esse milhão de dólares teria como destino principal pagar salários de verdade aos professores leigos, que ganhavam uma miséria (acho que menos de um quarto do salário mínimo) e o restante era para produzir algum material para eles, além de reforço da merenda escolar.
Em Brasília, o MEC criou uma comissão para administrar o dinheiro mandado pelo Banco Mundial e o que fazer com ele. Um economista, uma pedagoga, uma psicóloga, um sociólogo, um assessor de imprensa… Ah, alugaram uma casa para isso. E alguém tinha que limpar a casa, fazer café… Então contrataram também uma mulher para essas tarefas.
Todos esses custos, claro, saíram do dinheiro recebido do Banco Mundial. Como era projeto para um ano, imaginem quanto gastaram só para isso.
O restante do dinheiro foi para o Rio Grande do Norte. Não para Touros, mas para a Secretaria da Educação do Estado, onde criaram outra comissão para administrar tudo isso. E dali o que restou foi para a diretoria regional do ensino, onde gastariam pouco e mandariam o restante para a prefeitura, cujo prefeito era do PDS, sucessor da Arena, o partido da ditadura.
Quanto? Não dava para saber, imaginamos que seria uma parcela pequena do valor total do projeto, mas soubemos que nada estava chegando às professoras. Continuavam ganhando o mesmo valor, que segundo elas não dava para fazer uma feira. E as que tinham marido oposicionistas estavam com oito ou nove meses de atraso. Sem falar que a verba para a merenda escolar era suficiente para um mês apenas, e muitas crianças só iam à escola quando tinha merenda.
Adiantava fazer uma cartilha? Um pouquinho. Mas o sistema todo se manteria intacto. As professoras continuariam ganhando pouco e, sem formação complementar, sem condições de ensinar.
Mais tarde, já no governo Sarney, Fernando Passos, que também foi professor de cinema, dirigiu um filme de 26 minutos, para a Fundação para o Desenvolvimento da Educação (FDE) sobre a situação daquelas professoras. Mostrou trechos da aula dada por uma delas e uma caminhada de um povoado distante (Perobas, se não me engano) até Touros, juntando-se à professora de Carnaubinha, para chegar à prefeitura depois de horas caminhando e serem informadas que o salário atrasaria mais um mês.
Eu não participei do filme, ele foi feito com funcionários da FDE (Gama, Gilberto, Jurema e Taunay) mas fui com o Fernando a algumas faculdades de Pedagogia apresentar aos alunos, deixando muitos indignados e perguntando: “É para isso que estamos estudando nesta Faculdade de Educação?”.
O Fernando me disse que um dia foram convocados para ir a Brasília passarem o filme para o presidente Sarney e o ministro da Educação, Marco Maciel. Ao final, disseram-se impressionados e emocionados, mas fizeram alguma coisa?
Quando ouço alguém falar em meritocracia como justificativa para pessoas de famílias no mínimo de classe média, que tiveram acesso a comida farta e a boas escolas, entre outros “privilégios” (entre aspas porque não deveriam ser privilégios, e sim coisas acessíveis a todo mundo) dizendo que se deram bem por causa de seus méritos, como se quem está mal é porque não se esforçou, não tem méritos, eu me lembro de uma frase de Darcy Ribeiro: “A crise da educação no Brasil não é uma crise; é um projeto”. Concordo.
Houve melhoras no sistema educacional durante uns governos progressistas, talvez as crianças de Carnaubinha tenham hoje melhores escolas e condições para se desenvolver. Não voltei mais lá, mas vi que, por ser muito bonito, hoje é local cobiçado pela burguesia, cheio de “empreendimentos”, e pode ser que não as coisas relacionadas à educação não sejam mais como naquela época. Mas existem ainda lugares em que criança pobre não tem vez, mesmo nas capitais.
Mesmo em grandes centros, aos ricos tudo é possível, enquanto para os pobres, além da baixa qualidade do ensino em muitas escolas, tem essa corrupção travestida de religiosidade, que deteriora mais ainda o ensino. Haja mérito para uma pessoa pobre!
Fico com raiva e com vontade de forçar essas pessoas “meritocratas” a assistirem a esse filme e perguntar se elas, “bem sucedidas” são tão meritórias assim…
Procurei o filme na internet e achei no YouTube. Está com o som ruim, mas se alguém quiser assistir, só baixar um pouco o volume para espantar parte dos ruídos. O nome dele é “Eu, professor leigo”.
Mouzar Benedito é escritor, geógrafo e contador de causos.