Reforma previdenciária para as mulheres: o sofisma da igualdade jurídica

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Por Patrícia Maeda. juiza do trabalho, Justificando – 

Todo dia Marina levanta bem cedo para o trem não perder.




Já perdeu tanta coisa na vida que não pode mais arriscar.

A infância, sequer encontrou. Desde sempre teve o que fazer.

E esse mesmo caminho ao seu filho pretende ensinar.

Vinte anos e alguns poucos planos para distraí-la, afinal,

carnaval está chegando, e ninguém é de ferro também.

Sua mãe está vindo, trazendo lembranças da terra natal, inclusive vestígios da fome quase habitual.

A poeira colada na alma, viagem de toda uma vida,

que é nutrida de fé e esperança na sua oração.

E que mesmo sem ter, sempre tem sua mão estendida.

Essa gente, Brasil, que te faz verdadeira nação.

Todo dia Marina se deita bem tarde, não quer conversar.

Já deixou preparado o almoço e também o jantar.

Separou uns trocados pro pão do café da manhã, e que Deus lhe permita assim, amanhã e amanhã.

A vida de Marina, por Amanda Barbosa

A classe trabalhadora está sofrendo o maior rebaixamento dos direitos sociais historicamente conquistados sob o eufemismo de estarmos passando por “reformas”. Reforma do ensino médio público, reforma trabalhista, reforma da previdência e da assistência social… Reformar nesse contexto não significa fazer alguma mudança pontual e necessária, mas sim demolir todo o sistema de direitos sociais preconizado na Constituição Federal de 1988, uma doce promessa que nunca chegou a ser efetivamente cumprida.

Há muito sobre o que escrever, porém, é necessário delimitar nosso tema para as alterações no Regime Geral de Previdência Social para que possamos abordá-lo de uma maneira minimamente útil e esclarecedora para nossas leitoras.

A pós-verdade e a desinformação reinam na mídia aberta de forma que a propaganda sobre o mito do rombo da previdência e o alarmismo sobre a inevitabilidade dessa reforma com dados demográficos discutíveis são propagados como matérias jornalísticas, ocultando sua intenção de convencimento da população pelo terror, pela ameaça de um caos. Escolhemos alguns pontos essenciais sobre a demolição da previdência social, que se instrumentaliza na Proposta de Emenda Constitucional nº. 287, a malfadada PEC da Previdência (ou imprevidência?), certas de que não daremos conta de revelar todas as falácias por trás dela.

Os impactos da reforma previdenciária para as mulheres: o sofisma da igualdade jurídica

O modelo constitucional de seguridade social adotado no Brasil em 1988 abrange as políticas públicas sociais de saúde, previdência e assistência social e tem o caráter solidário e distributivista, inclusive em consonância com os objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil – expressos no art. 3º da Constituição Federal –, sobretudo construir uma sociedade livre, justa e solidária; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

O sistema de seguridade social pode ser considerado, nas palavras de Júlia Lenzi Silva: “uma das representações daquele momento histórico de grande relevância na luta pela positivação dos direitos humanos fundamentais no Brasil”. Assim, por  um lado, pensar este modelo como uma benesse do Estado é negar toda história de luta que nele resultou. Por outro, não há como negar a tensão entre essa concepção de Estado Social e de políticas públicas sociais e a expansão global do neoliberalismo e de suas políticas públicas econômicas, desde a promulgação da Constituição Federal.

Essa tensão se evidenciou em 2016, com aparente fortalecimento de medidas neoliberais. Nesse sentido, há menos de um ano discutíamos sobre o movimento de redução dos direitos trabalhistas e há exato um ano denunciávamos a misoginia em três casos emblemáticos de violência contra mulheres. Mas qual seria a relação entre o neoliberalismo e o sexismo? Em que termos ambos se relacionam com a demolição da previdência?

Existe uma relação de imbricação entre capitalismo e patriarcado, em que aquele se apropria deste como manifestação social de exploração, de maneira que não é mera coincidência que o governo atual tenha sido marcado por uma supremacia masculina branca e implementado, sem qualquer participação efetiva do povo, diversas medidas em desfavor da classe trabalhadora, agravando nosso quadro de desigualdade social e de gênero.

Como ressaltam Tainã Góis e Mariana Salinas Serrano, Simone de Beauvoir foi certeira na frase “nunca se esqueça que basta uma crise política, econômica ou religiosa para que os direitos das mulheres sejam questionados”. Sob a alegação de crise financeira da previdência, o governo atual toma medidas “palatavelmente” denominadas de “ajuste fiscal”, mas que na realidade concreta significa um desmonte de uma rede de proteção social, que afeta sobretudo as mulheres, senão vejamos.

Primeiramente…  é necessário pontuar que a PEC 287 não altera apenas regras sobre a previdência social, mas também atinge a assistência social. Além disso, em ambas, as alterações propostas não operam apenas num nível de ajuste de regramento técnico, mas representam verdadeira mudança na política pública social adotada em 1988.

É bem verdade que os requisitos para gozar de uma aposentadoria integral para todos que não tiverem 45 anos ou mais na data da promulgação da PEC – idade mínima de 65 anos de idade e 49 anos de contribuição – são terríveis para classe trabalhadora como um todo e assim devem ser questionados. Na opinião da economista Marilane Oliveira Teixeira, este projeto serve a dois propósitos:

prolongar ao máximo o acesso a aposentadoria de modo que a maioria da classe trabalhadora certamente morrerá antes de se aposentar e reduzir o valor do benefício, que hoje representa em torno de 85,2% para as mulheres e de 77,4% para os homens na comparação com os salários na ativa, ao reduzir para 76%, que corresponde a 51% por idade e mais 25% por ano de contribuição, as mulheres serão as principais afetadas.

No entanto, sob o argumento de promover a igualdade de gênero, conforme consta na exposição de motivos da PEC, o Estado resolve igualar os requisitos de idade e tempo de serviço para homens e mulheres para a concessão de aposentadoria. Obviamente faz parte da luta das mulheres a desconstrução do papel de dona do lar, a partir do qual a trabalhadora brasileira se sujeita a dupla ou até tripla jornada, mas fato é que sobretudo para as trabalhadoras de baixa renda essa é ainda uma realidade cotidiana.

Antes de pressupor igualdade formal entre homens e mulheres, cabe ao Estado prover meios de fomento da igualdade material, sob todas as perspectivas: seja pela educação emancipadora; seja por estabelecer a mesma responsabilidade pela criação dos filhos, com a licença natalidade compartilhável entre pai e mãe; seja por fornecer condições materiais – berçários, creches, lavanderias públicas e restaurantes de baixo custo. Essas são apenas algumas das ações que podem promover a uma redistribuição equitativa do trabalho reprodutivo e que devem preceder a qualquer redução de direitos das mulheres, com o falacioso pretexto de igualdade formal de gênero.

Ao invocar países da OCDE que não fazem distinção de gênero para fins de idade mínima para aposentadoria, o texto se mostra ainda mais perverso. Como é a condição de vida de uma trabalhadora no Canadá, na Dinamarca ou na Finlândia? É possível estabelecer uma comparação justa com a trabalhadora brasileira? Como impor a esta trabalhadora a mesma idade como requisito para a aposentadoria?

Aliás, dados do “Retrato das Desigualdades de Gênero e de Raça, estudo realizado pelo IPEA, em parceria com a ONU Mulheres, revelam que as mulheres brasileiras trabalham, em média, 7,5h semanais a mais que homens, uma vez que as trabalhadoras, além da jornada normal de trabalho remunerado, ainda se responsabilizam pelo trabalho doméstico não-remunerado.

Além da não desejada, porém real, “dupla jornada”, quando tratamos de mercado de trabalho, as diferenças se aprofundam. Nesse sentido, o próprio texto da exposição de motivos reconhece a desigualdade material de gênero ao mencionar que a inserção da mulher no mercado de trabalho se dá de forma desigual e que remanesce até os dias de hoje a desigualdade salarial, reconhecendo que o rendimento da mulher ainda é 81% do homem, conforme PNAD 2014.

Outro indicativo da desigualdade de gênero na participação no mercado de trabalho é que a maior parte das aposentadorias concedidas às trabalhadoras é por idade, porque a maioria delas tem muita dificuldade para comprovar o mínimo de contribuição exigido hoje pela lei para a aposentadoria por tempo, conforme estudo realizado pelo Dieese. Corrobora essa informação o fato de que as mulheres são maioria nos postos de trabalho precarizados (economia informal e trabalho doméstico) e terceirizados, o que aumenta sobremaneira suas dificuldades de implementar os requisitos para gozar de uma aposentadoria integral nos termos da PEC. Ainda de acordo com Dieese:

Em resumo, a discriminação sofrida pelas mulheres nos espaços público e privado e a deficiência das políticas públicas, que motivaram os constituintes a criarem, por meio da aposentadoria antecipada, uma espécie de “compensação” em favor delas, ainda se mantêm, impondo a elas muitas penalidades ao longo da vida.

Essa opção política do constituinte originário simplesmente desaparece com a PEC 287. Mas a crueldade não para por aí. Segundo levantamento do Dieese, outros benefícios previdenciários como o salário-maternidade, a pensão por morte e o BPC (benefício de prestação continuada) – esse ligado à Assistência Social – também têm maior incidência entre as mulheres. Em 2015, do total de dependentes que receberam pensão por morte, 84,4% eram mulheres e 15,6%, homens. Os benefícios assistenciais ao idoso, por sua vez, foram distribuídos em 58,5% para as mulheres e 41,5% para os homens.

A redução significativa no valor do benefício pensão por morte que, inclusive, poderá ser inferior ao mínimo legal, impactará diretamente na vida da mulher e de sua família.

Essa mudança prejudica sobremaneira as mulheres empobrecidas que ainda convivem com a realidade do abandono escolar em razão do casamento precoce ou da gravidez na adolescência. Com a morte do cônjuge-segurado provedor, essas mulheres sem capacitação para o mercado de trabalho e sem experiência profissional ficarão em clara situação de vulnerabilidade.

A PEC prevê ainda a proibição do acúmulo dos benefícios de aposentadoria e de pensão por morte ou de duas ou mais aposentadorias ou pensões, o que atingirá especialmente as mulheres idosas, maioria percentual na população idosa brasileira. Marilane Oliveira Teixeira aduz que:

Hoje é comum a acumulação de aposentadoria e pensão principalmente entre as mulheres idosas. Atualmente 2,4 milhões de beneficiários acumulam aposentadoria e pensão, sendo que 93,4% das pessoas beneficiadas tem 60 anos ou mais e a maioria são mulheres que recebem no máximo um salário mínimo de cada benefício. Se retirar um dos benefícios será uma crueldade com parcela da população cuja renda é essencial para sustentar as famílias.

Um outro ataque à mulher idosa é a alteração do Benefício de Prestação Continuada (BPC): o aumento da idade mínima de 65 para 70 anos, deixa ainda mais desprotegida o contingente de idosas pobres, tendo-se em vista a questão da feminização da pobreza no Brasil. Essas mulheres têm o acesso reduzido a outros benefícios previdenciários justamente em razão das dificuldades que encontram no mercado de trabalho formal.

Sobre as ainda vigentes aposentadorias especiais, as alterações serão mais dramáticas. A trabalhadora rural que contar com 44 anos ou menos na data da promulgação da emenda constitucional terá que trabalhar por, no mínimo, mais 21 anos, ao invés dos 11 anos preconizados pela regra atual. Deve-se considerar em que condições se dá o trabalho rural, altamente informalizado e por vezes degradante.

Com a mudança que passa a exigir que a contribuição previdenciária individualizada dos trabalhadores rurais em regime de economia familiar, muitas pessoas restarão absolutamente excluídas da proteção previdenciária, sobretudo se a renda familiar for muito baixa, pois deixarão de contribuir ou o farão apenas em nome do homem chefe de família, deixando sem cobertura mulher e filhos.

A ausência dessa proteção afetará especialmente as mulheres idosas, que perderão a possibilidade de se aposentar comprovando trabalho e até de solicitar pensão por morte de seus cônjuges.

A professora de educação básica que hoje pode se aposentar com 25 anos de contribuição na atividade do magistério perderá sua aposentadoria especial com o advento da PEC e terá que trabalhar até os 65 anos, com o tempo de contribuição mínimo de 25 anos (49 anos de contribuição caso deseje se aposentar com 100% do salário-benefício).

Portanto, não se trata de reforma, mas sim de demolição. A igualdade jurídica revela-se um verdadeiro sofisma para esconder o verdadeiro impacto da PEC 287, qual seja, o aprofundamento da desigualdade de gênero, com graves consequências não só para as mulheres, mas também para a sociedade brasileira como um todo. Por isso, não aceitamos nenhum direito a menos!

Patrícia Maeda é Juíza do Trabalho Substituta no TRT 15ª Região. Mestranda em Direito do Trabalho pela USP (2013/2016). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa Trabalho e Capital (GPTC/USP). Membro da Associação Juízes para a Democracia (AJD). Foi Auditora Fiscal do Trabalho.


Agradecemos a participação especial de Júlia Lenzi Silva, que gentilmente nos auxiliou com seu material de aula de direito previdenciário. Júlia é doutoranda em direito da Seguridade Social pela USP, mestra pela UNESP e professora de direito previdenciário.

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