Os impasses da etimologia: o caso de “fidalgo”

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P, compartilhado do Diário de Um Linguista – 

Um exemplo desse desatino etimológico é a palavra “fidalgo”. Basta consultar qualquer dicionário de português que traga informações etimológicas e lá está: “fidalgo”, contração de “filho de algo”. Essa explicação aparece, por exemplo, em Antenor Nascentes (p. 255). Isso nos faz crer que em algum momento da história do português, a expressão “filho de algo” sofreu sucessivas síncopes, nessa sequência: filho de algo > filho d’algo > filh’ d’algo > fi’ d’algo > fidalgo. Tudo parece muito lógico à luz da própria história fonética do português, cheia de síncopes de vogais e consoantes. (Síncope é o desaparecimento de um fonema em meio de palavra.) Além disso, “algo” significava “riqueza” no português medieval, o que parece fazer de “filho d’algo” uma expressão tipicamente portuguesa.

Só que há um complicador nessa história: o espanhol registra hijo dalgo no poema épico El Cid, do século XI, anterior portanto aos primeiros registros em português. E o dicionário etimológico espanhol Corominas, um dos mais completos do mundo, registra fidalgus num documento de cerca de 1197, o Fuero de Castroverde (p. 178).

Será então que o português e o espanhol cunharam ambos a mesma expressão “filho de algo” (isto é, filho de família rica e nobre) independentemente um do outro? E, mais surpreendente ainda, ambos sincoparam e aglutinaram suas respectivas expressões, chegando aos resultados idênticos fidalgo e hidalgo? Qualquer pessoa medianamente inteligente veria que tal explicação é inverossímil demais para se sustentar.




Na verdade, fidalgo não vem de filho d’algo, mas sim do espanhol hidalgo. Ou seja, foi em espanhol que a locução hijo de algo surgiu (o próprio significado de algo como “riqueza, nobreza” nasceu no espanhol e foi importado pelo português, o que pode ser provado pela datação das ocorrências dessas acepções em cada uma das línguas).

Pois bem, algo (no sentido de “riqueza”), hijo de algohijo dalgo e hidalgo são todas palavras espanholas emprestadas pelo português com a respectiva tradução de hijo por “filho”. O próprio Corominas, muito mais detalhado e embasado que os dicionários etimológicos do português, menciona esse fato.

Esse é apenas um exemplo de por que é tão importante e urgente elaborarmos um dicionário etimológico da língua portuguesa calcado em premissas e métodos científicos, que busque o étimo e a origem das palavras de nossa língua por meio de investigação empírica e não através da mera consulta a outras obras, igualmente equivocadas, ou do achismo de seus autores. É isso que dá a nós, pesquisadores do NEHiLP-USP – Núcleo de Apoio à Pesquisa em Etimologia e História da Língua Portuguesa da Universidade de São Paulo (https://nehilp.prp.usp.br) –, a convicção de que estávamos no caminho certo e realizando um trabalho importantíssimo, que é a elaboração do DELPo – Dicionário Etimológico da Língua Portuguesa. Infelizmente, como mencionei em meu post anterior, semana retrasada, esse projeto está parado, sem data para voltar. Pior ainda, sua página no site do NEHiLP, na qual já era possível fazer algumas consultas, está fora do ar. Assim caminha a pesquisa científica no Brasil.

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