Mas o rosto que vemos não é o da fotografia destes dias. Por trás deles, ou bem à sua frente, estão os rostos do que fomos na sua juventude.
Por Urariano Mota, compartilhado de GGN
Nesta semana, fui surpreendido pela notícia dos 82 nos de Caetano Veloso. 82, como assim?! Mas por cima da surpresa, recebi outra; os demais criadores da nossa música popular estavam acima de 80 anos: Gilberto Gil, Paulinho da Viola, Milton Nascimento, Chico Buarque, o mais novo, com 80 anos e 50 dias. Então me acendeu esta mágoa: por que são tão implacáveis os calendários? E depois, veio mais esta revolta: por que são tão burros os calendários?
Ao ver os rostos dos criadores, nós nos vemos neles. Não tanto pela forma física, em feições quanto aos corpos, que estão melhores do que os nossos nestes dias. Em alguns, como Paulinho da Viola e Caetano Veloso, estão mais bonitos. Como uma lei geral para indivíduos que não são um primor de aparência aos 20 anos, o passar do tempo os tornou belos. Mas não é à mais recente forma física que me refiro. A verdade é que ao ver seus rostos nos refletimos neles. Mas o rosto que vemos não é o da fotografia destes dias. Por trás deles, ou melhor, bem à sua frente, estão os rostos do que fomos na sua juventude.
A idade real é a que resiste em nossa memória dos seus mais fecundos tempos e rebeldia. Mais que resiste, toma conta de tudo e se sobrepõe a qualquer outra. Daí, a burrice dos calendários que não sabem nem percebem que Chico Buarque é
“Ouça um bom conselho
Que eu lhe dou de graça
Inútil dormir que a dor não passa”
Ou que Caetano Veloso é
“Eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui
Eu não tenho nada, quero ver Irene rir
Quero ver Irene dar sua risada”
Na época, achávamos que a risada de Irene vinha a ser a metralhadora de Che na Bolívia
O Gilberto Gil que vemos, entre indeléveis imagens, é o de
“Olha lá vai passando a procissão
Se arrastando que nem cobra pelo chão
As pessoas que nela vão passando
Acreditam nas coisas lá do céu “
Paulinho da Viola é como um sucesso inapagável do tempo
“Não posso definir aquele azul
Não era do céu nem era do mar”
Milton Nascimento, em vez dos próximos 82 anos, é o criador em nosso íntimo
“Maria, Maria é um dom, uma certa magia
Uma força que nos alerta
Uma mulher que merece viver e amar
Como outra qualquer do planeta”
Esses criadores, com aparência falsa de mais de 80 anos, neles somos até mesmo os que não estão mais a nosso lado como Sidney Miller, inesquecível
“Minha estrada, meu caminho,
Me responda de repente
Se eu aqui não vou sozinho,
Quem vai lá na minha frente?”
E lembrar poucos, o imediato destes que fazem parte de nós mesmos parece até uma injustiça. Porque a sua lembrança envolve tantos e tantas, que a individualização chega a ser um crime de lesa-humanidade. Quero dizer que não se podem ausentar da nossa idade e formação Dorival Caymmi, Pixinguinha, Noel Rosa, Cartola, Nelson Ferreira, Capiba, Antônio Maria, Luiz Vieira, Dolores Duran, Luiz Gonzaga, Jackson do Pandeiro, Geraldo Pereira, Ismael Silva, Wilson Batista, Canhoto da Paraíba, Ernesto Nazareth, João Pernambuco, Isaurinha Garcia, Aracy de Almeida, João do Vale, Assis Valente, Tom Jobim, João Gilberto, Johhnny Alf, Elza Soares, Elis Regina, Carmen Costa, meu Deus do céu, que injustiça seria se não lembrássemos
E Gal Costa, o que seria de nós sem a sua rebeldia?
Então a refletir, descobrimos um fato contraditório em suas vidas. Ao contrário do que recomendam os conservadores, ou a mais sensata ponderação, Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque, Milton Nascimento, Paulinho da Viola, não se abrigaram da tempestade em cabanas de urgência. Ainda que não tenham vestido uma couraça, uma roupa de herói durante a ditadura, à sua maneira eles dormiram no chão feito Ho Chi Minh no Vietnã. Eles foram expulsos da casa onde moravam, como Karl Marx em Londres. Eles estiveram próximos dos olhos vidrados de Che na Bolívia.
Eles estiveram com os heroicos militantes da resistência que foram às últimas. Isto é, eles cantaram compuseram, desafiaram, sofreram o terrorismo enquanto tudo era fascismo no horizonte do Brasil.
Em páginas do romance “A mais longa duração da juventude” escrevi:
“Vejo as águias encanecerem, acompanho os fios brancos de suas cabeças se tornarem frágeis, quebradiços, e me falo e percebo que algumas não piscaram no alto. No píncaro do tempo, não decaíram, como se fossem uma revolta contra a biologia, contra a organização da vida que se desorganiza e se desintegra quando chega ao fim. Parodiando Goethe no poema Um e Tudo, eles foram atravessados pela alma do mundo, e com ela lutaram sem descanso, como se vivos pudessem ter a eternidade. Tomaram outras formas, mas mantiveram a permanência do ser da juventude”.
Calendário, recolhe-te à tua insignificância! Pois contar 1,2, 80 e mais, não é compreender a marcha dos dias. A idade real desses criadores é a dos seus tempos mais fecundos. Agora e sempre, até a penúltima gota de tempestades.
*Vermelho https://vermelho.org.br/coluna/os-jovens-criadores-de-mais-de-80-anos/
Urariano Mota é escritor e jornalista. Autor do “Dicionário Amoroso do Recife”, “Soledad no Recife”, “O filho renegado de Deus” e “A mais longa duração da juventude” (traduzido para o inglês como “Never-Ending Youth”). Colunista do Vermelho e do Brasil 247. Colaborador do Jornal GGN.