Por Claudio Lovato Filho, jornalista e escritor –
“Seleção natural”, diz a mulher enquanto faz seu alongamento no parque junto com seu grupo de ginástica. Todos os demais permanecem em silêncio.
Ela tira uma sujeira invisível de sua roupa de ginástica, que parece muito nova, enquanto observa o sem-teto levantar-se de onde estava dormindo.
“Só os mais fortes sobrevivem. A vida é assim”, ela acrescenta, e então seu celular toca.
O sem-teto começa a caminhar em direção à avenida que margeia o parque, e sua companheira permanece deitada, enrolada no cobertor sujo.
“Não, agora não posso, meu anjo. Pede pra Rosalva, tá bom?”, diz a mulher. “Não, a mamãe não sabe a que horas vai chegar… Tá, a Rosalva faz pra você, fala com a Rosalva”, ela arremata e prossegue em seus exercícios.
O sem-teto que havia atravessado a avenida retorna trazendo uma sacola. Aproxima-se da companheira, retira da sacola alguns pãezinhos e uma caixa de leite. Ela ajeita as coisas sobre o cobertor e ele se senta sobre o que parece ser uma velha caixa de ferramentas.
A mulher olha para a cena e solta um “tsc”.
Ela então finaliza seus exercícios e vai embora, em seu passo enérgico, quase marcial, falando ao celular mais uma vez.
“Ah, não… Você prometeu, João Ricardo! Já faz quatro meses que eu não sei o que é botar o pé fora deste país maldito! Eu não aguento mais, João Ricardo!”
Ela se dirige ao estacionamento, abre a porta de sua Land Rover, entra, dá partida e se vai, cantando pneu.
Do canto onde estavam, os dois sem-teto seguem compartilhando sua refeição e conversando, de uma maneira muito concentrada, sobre algo que parece ser do mais absoluto interesse de ambos. Mais alguns minutos e eles começam a recolher seus pertences. Ele carrega a caixa de ferramentas com uma das mãos e, com a outra, um cartazete com os dizeres “eletricista – encanador – bombeiro gasista”; ela leva, aparentemente sem maiores dificuldades, uma malinha cor-de-vinho com fivela enferrujada e fecho estragado.
Caminham lado a lado e muito próximos, ele quase sobre o meio-fio, ela mais para dentro, caminham e conversam, juntos, ela com o braço livre enganchado no dele, e assim foram em frente.