Por Adriano Viaro, compartilhado de DCM
Não há novidade nem surpresa na afirmação de que a educação é o calcanhar de Aquiles de uma sociedade dita intelectualizada. Se ela vai bem, tudo se desenha na esteira de obviedades organizadas e estabelecidas. Porém, se for mal, os frutos passam a ser imediatos – além de a médio e longo prazo também. Dito isto, o Brasil convive com as armadilhas de uma educação que planta métodos e fórmulas no afã de preservar e manter o status quo (reserva de espaço).
Na foto: Como fazer brigadeiro? O Novo Ensino Médio ensina
Para falar de educação, no sentido formal do termo, é preciso se atentar aos mecanismos e dispositivos organizacionais do próprio conceito de educar – além dos padrões de estudo, entendimento, aprendizagem e preservação de formatos. É neste ponto, e apenas neste ponto, que entra o material didático como forma de obtenção de padrões e fórmulas.
Como tudo em nossa época, Sociedade do Cansaço (Chul Han), Modernidade Líquida (Baumann), Terra Dois (George Forbes), os conceitos ganham nomes “fofos” como forma de alimentar os fetiches de nossa sociedade “estrangeirista”. É neste momento que o material didático passa a ser “ecossistema pedagógico”, em uma tentativa de oferecer respostas para todos os desafios da educação.
Aqui cabe uma digressão: a oferta de respostas para todas as situações é a característica primeira de todo esse labirinto comportamental conhecido ou nomeado de pós-modernidade. Pessoas ressentidas e fragilizadas, em busca de analgésicos à lá SOMA de Huxley, sentem-se amparadas por “pacotes” de instalação pré-configurada que prometem não só as devidas respostas como o acesso às commodities comportamentais: fé, esperança, sucesso, alegria e, sobretudo, felicidade.
Voltemos ao ponto: o ecossistema pedagógico nos é apresentado em palestras e eventos luxuosos como a solução para todos os problemas. Se estivermos falando de escolas privadas, o pacote envolve capas Premium, tecnologias diversas, ambientes e laboratórios e, sobretudo, logins e acessos. Se a escola for pública, tudo é reduzido, porém mantido a partir do desejo e da condição das secretarias de ensino. Vocês devem estar se perguntando: e qual o problema até aqui? Tudo parece ajustado para resolver os desafios e anseios das escolas e ambientes escolares. Sim? Não.
Primeiramente, acreditar em respostas prontas para problemas históricos é risível. Em segundo lugar, vivemos em tempos de “reforma do ensino”, sobretudo no Ensino Médio, mas não somente neste nível. O elefante branco, denominado Novo Ensino Médio (NEM), deu liberdade para as fornecedoras de material didático no que tange a oferta de “disciplinas eletivas” para este segmento. Sim, li-ber-da-de.
“Estudos de Cinema”, “do boleto à bolada”, “dos jogos ao sucesso” são apenas alguns dos títulos ofertados para adolescentes. Ainda assim, alguns dirão: “mas isso torna o ensino mais atrativo”. Talvez eu concorde. Talvez, de fato, seja mais atrativo para adolescentes que ao invés de estudarem Filosofia, Sociologia, Literatura, Educação Artística, História e Geografia possam brincar de desenvolvimento de jogos, fingirem educação financeira com boletos e boladas e sentirem-se diretores de cinema ou produtores de podcasts. Mas e o aprendizado básico e consagrado para o futuro de uma geração que terá que assumir rédeas da sociedade?
Calma, o problema não é apenas esse. Há uma “não sútil” diferença entre os objetivos, propósitos e materiais em si: escolas privadas, preocupadas com a formação de uma classe média produtiva e empreendedora oferecem disciplinas para além das consagradas, retirando aulas de Ciências Humanas e Linguagens para venderem disciplinas formatadas pelos gigantes do material didático – que possuem TOTAL liberdade de oferta de conteúdo. Enquanto a rede pública recebe o refugo (produtos de segunda linha) dos mesmos conglomerados com o foco na geração de mão de obra limitada e sem futuro.
Outro ponto fundamental: o novo ensino médio apresenta ao menos cinco eixos norteadores e obriga as escolas a oferecerem ao menos dois. Ou seja, enquanto as escolas privadas oferecerão uma alta demanda de eixos voltados ao empreendedorismo de reserva (legado, herança e empresas familiares), as escolas públicas, sucateadas, continuarão oferecendo o básico, porém de forma precária e sem refinamento pedagógico. Como não podia ser diferente, as disciplinas eletivas são ministradas por professores de formação tradicional: licenciatura plena.
Como então lecionar as disciplinas eletivas? Simples, as gigantes dão a formação específica (com dois ou três encontros ministrados por coaches – sim, eles novamente). E como as gigantes dão as cartas também nas escolas públicas, as formações são amarradas em contratos para que os palestrantes sejam os mesmos representantes do coachismo à brasileira, preparando, deste modo, o “Mindset” dos docentes. Imagine o rombo: professores de língua portuguesa lecionando “projeto de vida” ou “Mindset vencedor”.
Quando falo em gigantes do material didático preciso explicar para além do termo: conglomerados multinacionais (ao menos em sua maioria) extremamente alinhados ao “fenômeno coach” (mascarado de inteligência emocional e psicologia positiva – ou seja, pseudociências) que pregam em seus materiais uma espécie de neoliberalismo didático 2.0.
Para estes gigantes, o pseudoconceito de Mindset é traduzido literalmente para mentalidade e apresentado como uma questão de escolha. Para ter sucesso, basta seguir os passos da mentalidade vencedora (dicotomia Mindset vencedor x Mindset fixo). Mas o problema não para por aí: escolas públicas, sobretudo e em grande parte de periferias, recebem o mesmo “aprendizado” em seus materiais. Por quê? Porque são os mesmos conglomerados que, em processos de licitação, fornecem suas soluções pedagógicas ao ensino público.
Pouco tempo atrás, dei entrevista para o site do sindicato dos professores do estado do Paraná, pois o conteúdo foi localizado de forma explícita no material dos alunos. Neste momento a pergunta que se apresenta é sobre em qual espaço essa política é inserida em tais materiais. Simples, o NEM prevê, em detrimento e redução de carga horária das disciplinas de Ciências Humanas, o chamado “Projeto de Vida”. Não passa de disciplina empreendedora neoliberal que visa a reserva de mercado para os subempregos destinados a essa população sofrida que lança mão do ensino público.
Como se não bastasse, o Projeto de Vida ultrapassa as fronteiras invisíveis de sua própria carga horária, entrelaçando-se ao Ensino Fundamental em disciplinas de inteligência emocional, socioemocional e afins. Essas disciplinas chegam a ter o nome, em alguns casos, de “líder em mim”. São sedutores para famílias sem esperança e lógicos para as famílias abastadas.
Nada de novo se lembrarmos do “ponte para o futuro” de um certo partido que esteve no front do golpe de 2016. O NEM e o “ecossistema pedagógico” são mecanismos de imposição, manutenção, preservação e reserva social de mercado. Pergunto: como enfrentar? É mister destacar que os ruídos e zumbidos dão conta da presença de lobbys nos corredores legislativos da pátria amada idolatrada salve salve. Ou seja, o enfrentamento deve partir do legislativo e com coragem.
Para não dizer que não falei das flores, o coachismo, enquanto dispositivo alienador e alienante, esteve em xeque pouco antes da pandemia quando foi proposta uma lei de criminalização desta prática. Não passou. O coachismo, junto do neopenteCOACHalismo (conceito autoral) formam um outro conceito meu: apocalipsecoaching. Este, por sua vez, está amarrado nos corredores da sociedade em geral e, por conseguinte, nos espaços escolares e educacionais em geral.
Enfrentar os gigantes do material didático é enfrentar o coachismo e toda a pseudociência neoliberal alienante e exploradora. Nossa educação precisa ser reformada, mas desde que busque a autonomia de estudantes cada vez mais preparados para a vida, ao invés de criar robôs que apenas reproduzirão o que sempre fizeram, porém, agora com metodologias pseudodidáticas que colorem com duas demãos o caos que está sendo implantado.
As gigantes dão as cartas e a mão da rodada não é o povo.