Desde que os judeus ergueram o Estado de Israel, em 1948, e os palestinos não criaram o Estado Palestino, como previa a Resolução 181 da ONU que, em 1947, dividiu o território palestino em duas partes, com vistas a satisfazer a aspiração dos dois povos, o conflito entre esses dois grupos nacionais não apenas permanece sem solução, como se agrava à medida que o tempo passa.
Por Williams Gonçalves*, compartilhado de OPEU
A cada vez que algum representante do povo palestino decide lançar mão da força para viabilizar alguma solução para o problema nacional, ou para simplesmente denunciar que o problema permanece e que os palestinos não desistem de viver de modo independente em seu próprio Estado, o contexto regional e internacional está mudado, e novos obstáculos se oferecem.
Em meio às diferentes e sucessivas conjunturas, nas quais o conflito entre israelenses e palestinos se inscreve, um Estado externo à região tem pontificado como ator permanente, sempre a apoiar incondicionalmente Israel: os Estados Unidos. Os demais atores regionais e extrarregionais têm mudado, ou adotado uma posição mais discreta, mas os Estados Unidos continuam a ocupar o centro do palco político.
Presidente Joe Biden se reúne, em 9 out. 2023, na Sala do Tratado da Casa Branca, com seus conselheiros de Segurança Nacional sobre a situação em Israel, após os ataques do Hamas (Crédito: Casa Branca/Adam Schultz/Flickr)
Esse protagonismo acontece por razões políticas internas e por razões de política externa, sendo mesmo difícil distinguir uma da outra. Na verdade, pode-se afirmar que essas razões são indistinguíveis. Não há como separar uma da outra. A crise que se abriu na Palestina, em decorrência do ataque praticado pelo grupo Hamas, mais uma vez vem mostrar essa dupla dimensão da relação dos Estados Unidos com o problema.
A crise atual surpreendeu o governo dos Estados Unidos em um momento particularmente difícil. De um lado, os norte-americanos se encontram à frente de uma coligação que apoia a Ucrânia na guerra contra a Rússia. O Governo Biden viu a guerra como uma solução para dois problemas: mediante ajuda aberta à Ucrânia, criar mercado para o complexo industrial-militar, que havia sido deixado de lado por Donald Trump; e reassumir a liderança da OTAN, com vistas a enfrentar o desafio da “aliança sem limites” de russos e chineses. De outro, Joe Biden cogita se reeleger presidente contra a possível candidatura de Trump, sendo criticado pela oposição por desperdiçar dinheiro com os ucranianos e por arriscar uma aproximação com o Irã.
Biden tem procurado explorar esse quadro complexo, com vistas a alterar o tabuleiro político do Oriente Médio a favor dos Estados Unidos e de Israel, ao mesmo tempo em que busca capitalizar o sucesso de sua estratégia em favor de sua reeleição.
Reeleição e silenciamento de vozes dissonantes
Depois do fosso que Trump cavou separando os republicanos dos democratas, a política de incondicional proteção a Israel foi o que restou do antigo consenso bipartidário. Essa é uma posição que une a quase totalidade dos norte-americanos. Aqueles poucos que assumem uma posição mais crítica em relação ao problema, como é o caso de uma ala do Partido Democrata, favorável a um esforço no sentido de criar um Estado Palestino, foram silenciados.
Lisa Lerer e Jennifer Medina, em matéria do The New York Times (“For Democrats, Crisis in Israel Could Be a Unifying Force”), de 12/10/2023, relatam que “os comentários de membros mais liberais – incluindo as deputadas Ayanna Pressley, de Massachusetts, e Cori Bush, do Missouri – apelando a ’um cessar-fogo imediato e uma ampla desescalada’ – foram ampla e imediatamente condenados pelo partido”. A secretária de Imprensa do presidente Biden considerou os comentários das duas deputadas “repugnantes e vergonhosos”. Para demonstrar que o Partido está totalmente unido em torno da política de Biden, até mesmo a deputada democrata por Michigan, Rashida Tlaib, uma mulher palestino-americana, absteve-se de fazer considerações públicas sobre a ação do Hamas.
(Arquivo) Representante (deputada) Cori Bush, em protesto em frente ao Capitólio, em Washington, D.C., em 3 ago. 2021 (Crédito: Miki Jourdan/Flickr)
Sondagem do Instituto Gallup constatou que a simpatia pela causa dos palestinos aumentou na sociedade norte-americana. Mesmo assim, segundo o Gallup, em cada dez norte-americanos, sete são favoráveis a Israel. Sendo que esse aumento do número de norte-americanos simpáticos aos palestinos se deu nos campi universitários, nos meios democratas.
Essa inclinação democrata por uma solução que beneficie os palestinos vem sendo explorada pelos republicanos, que procuram amplificá-la com a finalidade de provocar desunião no Partido Democrata. Por isso, os líderes partidários democratas têm sido implacáveis, não permitindo a explicitação de divisões dentro do partido. Tendo em vista o elevadíssimo nível de apoio da sociedade norte-americana a Israel, manifestações pró-Palestina de democratas podem prejudicar as pretensões eleitorais de Biden.
Ao mesmo tempo em que a posição de integral apoio a Israel em sua política de ocupar fisicamente o norte de Gaza e de reduzir ao mínimo o espaço destinado aos palestinos tem um caráter político doméstico, visa, por outro lado, a enfrentar a aliança sino-russa, que trabalha para ampliar seus vínculos com o Sul Global e para isolar os Estados Unidos. Nesse sentido, o apoio norte-americano à violenta repressão de Israel aos palestinos tem por alvo o Irã. Para o Governo Biden, a discrição com que Rússia e China têm-se comportado em relação à crise, em vez de revelar alheamento à questão, revela, na verdade, o apoio que concedem ao Irã.
Aliança ‘antiocidental’
A viagem de Vladimir Putin a Pequim para se encontrar com Xi Jinping, que tem por motivo a participação na 3ª Cúpula da “Belt and Road Initiative”, constitui prova do entrosamento desses dois membros mais arrojados do BRICS. Segundo os norte-americanos, o convite a Putin, na qualidade de “convidado de honra”, traduz a intensidade dos negócios que mobilizam os dois países. A jornalista Robyn Dixon informa, nas páginas do Washington Post, de 16/10/2023 (“As Putin Visits China, New Anti-Western Coalition Turns On Israel”), que “o comércio russo com a China atingiria 200 bilhões de dólares até o final do ano”. E que “a participação da China nas importações de veículos russos nos primeiros oito meses de 2023 aumentou para 92% em comparação com 10% em 2021”.
Para o Governo Biden, não dúvida alguma de que essa aliança tem caráter antiocidental. Da mesma forma que não tem dúvida de que o tentáculo dessa aliança no Oriente Médio é o Irã. Defender Israel dos ataques do Hamas é lutar contra o Irã. Daí o apoio integral a Benjamin Netanyahu em sua política de arrasar com Gaza, mesmo que isso leve a uma guerra contra o Irã. Para os norte-americanos, a questão de Israel se converteu, portanto, em uma questão central, em que o que está em jogo é o desafio que chineses e russos lançam ao mundo ocidental.
Contrapondo-se à acusação que é feita a israelenses e norte-americanos de que seus propósitos são puramente destrutivos, ao não oferecerem nenhuma alternativa aos palestinos a não ser lutar desesperadamente pela sobrevivência, recorrendo aos escassos meios de que dispõem, Jeffrey Sonnenfeld, Dennis Ross e Adam Boehler assinam artigo na Time, de 15/10/2023, (“How Peace and Prosperity in the Middle East Can Still Be Reached”). Sonnenfeld é colunista da Time, Ross é ex-assistente especial do presidente Barack Obama encarregado do Oriente Médio, e Boehler é CEO da Rubicon Founders, empresa de investimentos em saúde.
(Arquivo) Dennis Ross discursa na Emory University, em 1º de maio de 2007 (Crédito: Nrbelexv/Wikimedia Commons)
No artigo que assinam, eles confiam em que Israel, com o apoio dos Estados Unidos, irá até o fim e erradicará o Hamas de Gaza. Se assim for, segundo eles, não será difícil o êxito em promover o entendimento da Arábia Saudita com Israel, o que constituiria a chave da estabilização do Oriente Médio. E os palestinos? Para os palestinos, eles acenam com o Plano de Paz para a Prosperidade. Praticamente dando como encerrada a questão de um Estado para os palestinos, o plano consistiria em uma injeção de recursos em Gaza. No entendimento deles, a questão política se resolve com a solução econômica, que pode ser promovida mediante o estímulo aos negócios em Gaza.
Por meio de um investimento de cerca de 50 bilhões de dólares, os três idealizadores do plano garantem que atrairiam investimentos de grandes empresas, o que seria fator de geração de empregos e muito dinamismo econômico. Assim, tudo seria resolvido. Os palestinos alcançariam a prosperidade, e a região viveria em paz. Tudo depende, portanto, de Israel acabar com o Hamas, e os palestinos entenderem que o grande negócio não é ter Estado, e sim ter uma economia capitalista próspera, mesmo que sob a tutela de Israel.
* Williams Gonçalves é Professor Titular de Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e professor do Programa de Pós-Graduação em Estudos Marítimos da Escola de Guerra Naval (PPGEM-EGN). Doutor em Sociologia, também é pesquisador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre Estados Unidos (INCT-INEU).
** Revisão e edição final: Tatiana Teixeira. Primeira versão recebida em 17 out. 2023. Este Informe OPEU não reflete, necessariamente, a opinião do OPEU, ou do INCT-INEU.