Tenho olhado muito para moradores de rua. Vi um filme em que um sem teto, consciente de sua situação, reclamava que as pessoas não o viam, olhavam, mas não viam.. Era invisível. Isso o tornava revoltado. Até que um casal resolveu se debruçar sobre sua vida, conversando sobre seus problemas, e ele e sentiu contemplado.
Recentemente, entrevistei o Jorge Luiz Henkel Melo, morador de rua aqui no Rio de Janeiro. Um quebrador de paradígmas, como se define, Jorge é um resistente, estuda graças a uma bolsa de estudos num dos colégios mais tradicionais do Rio, toca violão, cuida do seus cachorros e é solidário com outros que moram na rua.
Por falar em solidariedade, Jorge mencionou o Hely, amigo do Bem Blogado, de Paquetá, que vive para apoiar moradores de rua, com alimentos, ajuda na retirada de documentos, localização de familiares e colocação de emprego (foto na capa deste post de Gabriela Souza/BandNewsFM).
Bom, tudo isso para dizer que o amigo Claudio Lovato publicou este texto no Facebook. Adorei e nem percebi que já tinha adorado anteriormente e publicado (a mente pregando peças). Mas, como diz Heráclito, “ninguém pode entrar duas vezes no mesmo rio, pois quando nele se entra novamente, não se encontra as mesmas águas, e o próprio ser já se modificou”, vamos com o texto do brilhante Lovato (Washington Araújo)
Por Claudio Lovato, jornalista e escritor
O morador de rua mal se lembra do próprio nome (Maurício Santos Pereira) nem da idade (47 anos) nem de onde nasceu (uma cidade no interior do Mato Grosso do Sul), mas segue em frente. Ele passa pela garotada na saída do colégio, uma garotada que (claro) ri e se empurra e ri e se abraça e ri. Um ônibus freia antes da faixa de segurança e o motorista faz sinal para que o grupo atravesse: um fuzuê de risadas, tênis, mochilas e celulares coloridos.
Com astuto olhar desatento, a turma do boteco da esquina observa a cena. Boteco cujo dono, Setembrino, o Bino, nesse momento olha para a TV e fala mal do VAR, que anulou o gol do seu time ontem à tarde. Quem discorda é Luiz Heleno, um dos frequentadores mais antigos, que mata o que ainda havia de cerveja no copo e diz “Fui”. Vai e, antes de tomar o rumo de casa, resolve passar na lotérica, pensando assim: “Se eu não jogar, aí sim, é certo que não vou ganhar”. E faz duas Lotofácil, pagando em dinheiro em papel e moedas para a moça do caixa, que se chama Elaine. Ela sorri para ele do mesmo jeito que sorriu para outros cinquenta ou cem antes dele.
O apostador seguinte deseja a ela “boa semana” e sai, gentil, mas de cenho franzido. Está preocupado com a grana, com as contas da casa, com os parcelamentos, com a fatura do cartão de crédito. E então pensa que, se ganhar no jogo, vai mandar esta vida para o diabo que a carregue e vai viver de verdade. E, no meio dos pensamentos, ele quase esbarra no ambulante que vende fones de ouvido e capas de celular.
O ambulante veste a camisa do clube amado, número 10 às costas, orgulhoso pelo resultado de ontem, feliz da vida com o VAR. Hoje vai comprar o botijão de gás e ficar mais sossegado, sem as reclamações da mulher e sem estresse, tá ligado?
Então vem um sujeito de camisa branca e paletó cinza, que diz “vou levar um fone”. O sujeito tira R$ 10,00 da carteira, pega o fone e vai em direção à estação do metrô. Viaja em pé no vagão cheio, conferindo as mensagens no celular. Tem pressa, e, ao que tudo indica, o almoço vai ter que ficar para mais tarde, talvez para a hora do jantar. “Chefe novo é uma merda”, ele diz quase em voz alta, e os passageiros em volta riem.
A que mais ri é uma mulher alta de cabelos encaracolados, que virou chefe há pouco tempo na repartição pública em que trabalha. Dali a duas estações ela, Gabriela, desce numa das avenidas mais movimentadas do centro da cidade. O celular toca, ela confere e não atende; guarda o celular na bolsa e, em instantes, entra no prédio da secretaria de estado.
Prédio de onde está saindo, nesse exato momento, o assessor de imprensa do secretário, falando ao celular (claro). ”Ele está sem agenda esta semana, João. Vamos deixar essa entrevista para a semana que vem”.
O assessor dobra numa rua transversal e entra num restaurante muito tradicional na região. Senta-se a uma mesa perto da porta e pede ao garçom o prato do dia – picadinho à brasileira. “Valeu, Rochinha”, e o Rochinha, um dos garçons mais antigos da casa, sai anotando o pedido.
Um dos caras no grupo da mesa próxima ao banheiro faz o sinal para fechar a conta, e Rochinha responde afirmativamente com um gesto. Esse cara da mesa perto do banheiro está se sentindo muito bem hoje: recebeu um tremendo elogio público no trabalho e foi aplaudido pelos colegas. É um vendedor e vem se saindo muito bem; bônus em cima de bônus – e vai pagar a conta hoje.
Na saída do restaurante, ele é abordado pelo morador de rua que quase não se lembra do próprio nome (Maurício Santos Pereira) e que, em sua peregrinação, acabou por dar as caras naquela rua, naquele momento.
”A fome tá apertando, doutor “, ele diz, e o vendedor craque do time da empresa dá a ele uma nota de R$ 10,00. ”Deus abençoe, doutor”, mas o homem nem olha para ele, não sorri, não fez nenhum gesto, nada; apenas dá as costas e vai embora com os colegas.
O segurança do restaurante vai em direção ao morador de rua e pede, em voz tentativamente calma e controlada, que ele vá saindo, numa boa, só vai saindo, ok?, beleza?, valeu. E o homem que um dia já foi chamado pelos familiares e amigos de Maurício, Mauricinho, Maurição vai saindo, vai-se embora, segue em frente.
Segue em frente.
E quase nem vê quando passa correndo por ele, em direção ao Uber, um sujeito que acredita ter um nome a zelar e que está convicto de que vai deixar, de forma profunda e permanente, sua marca no mundo.
Aqui o vídeo com o Jorge Luiz.