Por Claudio Lovato, Museu da Pelada –
O senhor de bigode grisalho e boné amarelo sentado na cadeira de plástico entrelaça os dedos das mãos, levanta a cabeça, olha para o grupo diante dele e diz:
– Hoje vamos marcar lá em cima!
Lá no fundo, sem que ninguém lhe dê atenção, Nilo do Espírito Santo acende a vela recém tirada da embalagem diante da imagem de Nossa Senhora Aparecida.
– Vamos chegar junto na saída de bola deles! – enfatiza o homem que todos chamam respeitosamente (já foi mais respeitosamente) de seu Deco.
Zé Alípio, o Netinho, escondido na terceira fila atrás de Toninho Dedão e Marcelo Voadeira, olha para o lado, encara a parede vazia e suspira.
Bruno da Bênção, às costas de Netinho, deixa escapar (não fez nenhuma força para conter) um “tsc”, que todos fingem não ouvir.
Rafa Careca bate palmas duas vezes, confiante, em uma tentativa de incentivo.
Lá fora, os quero-queros cantam; são muitos, ao que parece.
Oito derrotas consecutivas.
E então o homem de bigode, seu Deco, diz:
– Vamos para o jogo!
II
Os dedos indicador e anular da mão direita, amarelados de nicotina, amarelo vivo de solidão reiterada e de alertas desde sempre ignorados, seguram agora não o cigarro de praxe, mas uma caneta bic azul já quase sem tinta. Na outra mão, a prancheta.
Ele diz:
– Hoje é esperar, deixar os caras virem. Quando tomarmos a bola, só vamos sair na boa!
Nilo do Espírito Santo olha para a imagem de Nossa Senhora Aparecida, retira uma vela usada da embalagem de plástico e pega no bolso do abrigo a caixa de fósforos meio molhada da chuva de outro dia.
– Deixem eles com a bola, porque, como a gente já sabe, posse de bola e controle do jogo são duas coisas diferentes! – diz o veterano de muitas batalhas, mas que hoje, naquele grupo, já é tratado pela maioria apenas como “O Velho”.
Netinho, sentado na quarta fila ao lado de Rubão Mão de Vaca, olha para o lado, em direção à janela basculante em cima da porta que dá para o banheirinho, e bufa.
Bruno da Bênção, sentado bem em frente, volta-se para o companheiro e solta um xingamento, sussurrado, entre dentes, dirigido a seu Deco. Netinho e todos os que ouviram balançam a cabeça em sinal de concordância.
Rafa Careca bate palmas três vezes; um esforço perseverante.
Lá fora, os quero-queros cantam baixo, sem muita força. Provavelmente são poucos, e esparsos.
Nove derrotas consecutivas.
E então o homem do bigode, seu Deco, diz (apenas diz, não exclama):
– Vamos para o jogo, moçada.
III
As mãos trêmulas agora repousam na prancheta colocada sobre os joelhos, que também parecem tremer. A caneta azul é a mesma do último jogo, mas ela já não é útil, porque a tinta secou há pelo menos dois dias.
Dez derrotas consecutivas e ele diz:
– Hoje vamos com duas linhas de cinco, e o Edu Zebra um pouco mais adiantado.
Nilo do Espírito Santo posiciona o toco de vela em frente à imagem de Nossa Senhora Aparecida. Vai acendê-la, mas a caixa de fósforos está vazia. Ele pensa no que fazer.
– Mas não é cinco-quatro-um. São duas de cinco. E, quando eles vierem para cima da gente, o Edu tenta se posicionar um pouco mais à frente, nas costas dos zagueiros deles, e aí é bola comprida nele, de preferência com lançamento do Netinho. – explica aquele que, nesse grupo, já foi veterano, já foi velho e agora é tratado como um adareço fora de moda que eles têm que carregar no pescoço, à força, por alguma razão desconhecida.
Netinho, sentado na quinta fileira de cadeiras, quase na porta do vestiário, muito perto de onde está agora seu tio Nilo do Espírito Santo (agachado e pensativo em frente à imagem de Nossa Senhora Aparecida), fecha os olhos, sorri e, para surpresa geral, para grande espanto corroborado por muitas bocas abertas, bate palmas – uma, duas, três, quatro vezes.
Bruno da Bênção, de um ponto diametralmente oposto ao de Netinho, agarra com força os braços da cadeira em que está sentado, tem os olhos semicerrados e, de repente,solta um assovio daqueles altos e cortantes, do tipo que dói no ouvido de quem está perto, e então começa, ele também, a bater palmas.
Rafa Careca, tomado pela euforia, levanta-se da cadeira e grita, com os dois braços levantados:
– É isso aí, porra!
Lá fora, os quero-queros dão início a uma balbúrdia infernal. Parecem ser mais de cem, ou mais de mil.
O barulho de um trovão como jamais ouvido anteriormente naquela região faz tremer, com sua fúria ancestral de mágoas por muito tempo guardadas, as paredes descascadas do velho vestiário.
E o homem de bigode e boné amarelo, num tom firme e peremptório que ele próprio, tempos depois, admitiria que considerava impossível para aquele momento, diz (exclama) então:
– Vamos lá ganhar esse jogo, caralho!!!
IV
Nilo do Espírito Santo posiciona a vela em frente à imagem. Ele sente muita gratidão. A vela é nova, vermelha e longa, e o isqueiro de plástico preto reluzente funciona que é uma beleza.
Às suas costas há um vozerio animado, feliz, e cada palavra pronunciada remete ao desejo urgente de ir para o campo.
Nilo sorri e pensa (mais uma vez) que, quando chegar seu dia, seu momento derradeiro, sua despedida definitiva, ele quer que seja ali, no meio daquilo, e ele tem uma certeza secreta de que assim será.
Ele nunca quis outra coisa tanto quanto isso.