Por Pablo Ortellado, publicado no Jornal GGN –
Combate ao fenômeno requer superação de desafios como a definição, extensão real do fenômeno e qual órgão regularia circulação
Jornal GGN – No artigo a seguir o cientista-político e professor da USP, Pablo Ortellado, levanta três desafios para combater as fake news – notícias falsas. Primeiro a definição do que realmente pode ser circunscrito como “notícia falsa” capaz de implicar em uma ação criminal. Segundo concluir a extensão real do fenômeno sobre o mercado da informação e, por fim, a competência, ou quem deve ser responsável pela regulação da circulação de notícias falsas. Polícia Federal? Judiciário? Tribunais Eleitorais? Ou uma “força-tarefa, como se propôs, incluindo o exército e os órgãos de inteligência?”, pondera Ortellado.
O termo ganho destaque em dezembro de 2016, durante a campanha eleitoral norte-americana, com a aumento significativo do volume de notícias e matérias falsas que surgiram para atacar os presidenciáveis na disputa. No Brasil, o tema ganhou destaque recente com iniciativas de setores do Judiciário, Executivo, Legislativo e Polícia Federal em combater o problema.
Os jornais têm relatado várias iniciativas da Polícia Federal, do Executivo, do Legislativo e do Judiciário para regulamentar a circulação das chamadas noticias falsas, principalmente no período eleitoral. Há três desafios que as medidas precisam enfrentar e cujos riscos são muito maiores do que o remédio que podem trazer.
1. Definição
O termo fake news, em português, notícias falsas, ganhou difusão em dezembro de 2016 no contexto da campanha presidencial americana. É um termo que nasceu na cobertura jornalística e na dinâmica do debate político e, por isso, nunca foi propriamente definido.
Primeiro, o termo foi utilizado para se referir a sites maliciosos que promoviam informação equivocada travestida de jornalismo —sites que se disseminaram no contexto da campanha eleitoral americana, principalmente para atacar adversários. Depois, o próprio Donald Trump passou a utilizar o termo para se referir a veículos da grande imprensa que faziam matérias que ele não considerava adequadas.
O termo se tornou assim excessivamente elástico, sendo utilizado tanto para se referir ao post de um blog que promovia boatos sobre Hillary Clinton, como para se referir a uma matéria investigativa do “New York Times”.
Para escapar da imprecisão, alguns teóricos têm tentado dar consistência ao conceito circunscrevendo o fenômeno àquelas matérias inverídicas que aparentam ser fruto de apuração jornalística e cujo erro advém não de uma apuração ruim ou descuidada, mas de uma intenção maliciosa (busca de lucro econômico ou benefício político).
Embora essa definição mais precisa seja mais útil, ela ainda é incapaz de dar conta do fenômeno. Quase todos os sites aos quais queremos nos referir ao utilizar a expressão “site de notícias falsas” apenas ocasionalmente produzem notícias falsas, no sentido circunscrito de mentiras travestidas de notícias.
A maior parte do que é produzido regularmente por esses sites são matérias recheadas de pequenas distorções: exageros, manchetes apelativas, sensacionalistas ou em desacordo com o texto, especulações apresentadas como fatos, falsas atribuições e uma miríade de outros procedimentos de fraude e logro. O uso do termo “notícias falsas” aponta só para a ponta mais extrema e visível de um problema que é maior e mais nuançado.
Embora possamos suspeitar que há motivação política ou econômica por trás de algumas dessas notícias enganosas, é difícil comprovar a má-fé e garantir que não se trata apenas de erro. Como, na prática, separar uma informação falsa, fruto de um erro de apuração, daquela que foi produzida intencionalmente, de forma maliciosa?
Além disso, qual o grau de erro que deve ser objeto de algum tipo de sanção? Um exagero apoiado nos fatos deveria ser aceito? Uma frase tirada de contexto e lançada na manchete? Uma especulação apresentada de maneira a parecer um fato concreto?
Como se vê, a linha é difícil de ser traçada e uma série desses expedientes são também utilizados pela chamada “imprensa profissional”.
2. Extensão
Essas considerações nos levam ao segundo ponto, a dimensão do fenômeno das notícias falsas. Nosso problema não é apenas identificar o erro, avaliar o grau do erro e determinar a intenção. O problema é também de escala.
O Brasil tem hoje três agências de verificação de fatos, o que no jargão do meio se conhece como fact-checking: as agências Lupa, Aos fatos e Pública. Estamos falando de três iniciativas profissionais, vinculadas ao International Fact Checking Network, com jornalistas exclusivamente dedicados à tarefa de apurar e verificar o embasamento factual do que disse um político ou do que alegou um artigo.
Se somarmos tudo o que as três iniciativas produziram na última semana, não chegamos a dez verificações. Enquanto isso, todo dia se produzem no Brasil de 3.000 a 5.000 notícias de política nacional, entre as matérias que são produzidas pela grande imprensa, pelo jornalismo digital e pela imprensa alternativa, tanto a de esquerda, como a de direita.
A desproporção entre tudo o que se produz e a estrutura existente para verificar é muito grande. Estamos falando de pelo menos 20 mil matérias por semana, podendo chegar a quase o dobro disso, contra uma estrutura disponível capaz de verificar apenas uma dezena, ou seja, 0,05% do total. Para dizer sem rodeios, é impossível verificar com rigor as notícias de política que o Brasil produz diariamente.
Para escapar desse problema, podemos supor uma abordagem diferente que enfatize não as matérias, mas os veículos responsáveis pelas matérias, retirando do ar os sites que reiteradamente produzem notícias falsas. Mas aí enfrentamos um outro desafio.
Quando olhamos para a propriedade e para o desenvolvimento desses sites engajados que promovem a desinformação, vemos que frequentemente seus operadores tem um portfólio de vários domínios que vão utilizando e descartando quando passam a ter problemas com a Justiça ou quando as plataformas os punem. Vimos isso recentemente, em abril, quando o Facebook mudou seu algoritmo para degradar o desempenho de sites que tinham certas condutas maliciosas e em seguida vários operadores passaram a descartar domínios antigos e migrar para outros mais novos que contornam as exigências da plataforma. Com a hospedagem no exterior e a adoção de serviços de anonimização, estabelecer quem está por trás de cada site de notícias falsas não é trivial e seguramente toma mais tempo do que a duração do período eleitoral.
3. Competência
Quem deveria ser responsável pela regulação da circulação de notícias falsas? As polícias judiciárias, como as polícias civis e a Polícia Federal? O Judiciário, por meio dos tribunais eleitorais? Uma força-tarefa, como se propôs, incluindo o exército e os órgãos de inteligência?
Creio que não é necessário discorrer sobre o grave risco à liberdade de expressão que consiste no Estado ter o poder de definir qual notícia é legítima e qual não é e poder censurar ou perseguir o emissor. Isso simplesmente não condiz com uma democracia liberal, em qualquer acepção do termo.
Além desse argumento de princípio, que deveria ser suficiente, há ainda outro, de natureza prática e operativa. Dado os problemas de definição e de escopo, uma abordagem orientada a sanção (multa, censura ou punição da chapa) seguiria apenas dois caminhos: seria inócua ou cometeria arbitrariedades. Ou bem cometeria abusos reiterados buscando a eficiência, ou seria cuidadosa e estéril, já que não teria como processar o grande volume do que é produzido.
Se tivermos que escolher entre as principais propostas que estão sobre a mesa, o melhor é não fazer nada e ficar como estamos. O desafio imposto pelos sites de notícias falsas não tem solução fácil e a abordagem mais adequada que inclui transparência, educação e autorregulação apenas mitiga o problema.