Um dos capítulos mais dramáticos da história do Brasil vai passar, mais uma vez, quase desapercebido no Rio de Janeiro
Por Agostinho Vieira, compartilhado de Projeto Colabora
Na foto: Estátua do corneteiro da Batalha de Pirajá, nas esquinas da Garcia D`Ávila com a Visconde de Pirajá, em Ipanema. Foto Agostinho Vieira
No próximo dia 2 de julho, os baianos vão comemorar com muita festa, como de hábito, os 200 anos da independência da Bahia, um dos capítulos mais emocionantes e violentos da História do Brasil. Quem me chamou à atenção para o fato foi Allana Gama, uma jovem jornalista baiana que veio, recentemente, reforçar os quadros do #Colabora: “Vocês não comemoram o 2 de julho?”, indagou Allana, num misto de curiosidade e indignação. “Nem na escola vocês estudam a independência da Bahia?”, insistiu a moça, cada vez mais agastada com a minha ignorância. Envergonhado, pensei em mentir, mas acabei admitindo a minha absoluta falta de conhecimento.
A situação ficou ainda mais constrangedora quando Allana começou a listar algumas das heroínas daquelas batalhas, na esperança de que eu lembrasse de alguma coisa:
– Maria Felipa, a escravizada que lutou contra os marinheiros portugueses? – perguntou animada.
– Lamento, não sei quem é – respondi sem graça.
– Nem a Maria Quitéria? E a Joana Angélica?
– Essas eu conheço bem, são duas ruas paralelas de Ipanema – disfarcei, tentando ser engraçado e buscando um jeito de dar um fim àquela embaraçosa conversa.
Sempre achei que os meus tempos na Escola Municipal Sarmiento, no Engenho Novo, e no Colégio Pedro II tinham sido ótimos e suficientes para me proteger dessas situações. Não foram. Fui pesquisar e me dei conta de que não conhecer a história da Independência da Bahia é uma falha grave de formação, uma página importantíssima na vida do Brasil que eu deixei passar em branco, especialmente pela participação das mulheres, dos indígenas e da população negra. Foi uma guerra sangrenta que durou um ano e cinco meses e terminou exatamente no 2 de julho de 1823, há duzentos anos. Ela envolveu cerca de 15 mil soldados de cada lado e deixou mais de dois mil mortos. De um lado os “brasileiros” e o príncipe regente Dom Pedro I, do outro, as tropas leais à Coroa Portuguesa, que não queriam a Independência.
Entre os muitos personagens interessantes, as três mulheres citadas por Allana e um corneteiro. A primeira delas é Maria Felipa de Oliveira, mulher negra que nasceu escravizada e, depois de libertada, foi trabalhar como marisqueira, pescadora e trabalhadora braçal. São poucos os registros e documentos históricos sobre ela, há até quem duvide da sua existência. Mas ela seria uma exímia lutadora de capoeira e teria liderado 40 homens e mulheres nas batalhas pela Independência. Até hoje, com razão, é muito celebrada nas festas baianas.
A segunda mulher fundamental nessa história é a freira Joana Angélica de Jesus, que era madre superiora do Convento da Lapa, em Salvador. Ela foi assassinada por soldados portuguesas que queriam invadir o local em busca de munição e dos revoltosos brasileiros que se escondiam por lá: “Respeitem a casa do senhor, respeitem a casa de Deus, vocês só entrarão aqui por cima do meu cadáver”, teria dito Joana Angélica.
A terceira e talvez mais famosa é Maria Quitéria, que também é de Jesus, pelo menos no sobrenome. Nascida em Feira de Santana, foi a primeira mulher nas Forças Armadas brasileiras. Para isso teve que se disfarçar de homem: cortou o cabelo, amarrou os seios e vestiu roupas masculinas. Seu nome de guerra era soldado Medeiros. Seu pai descobriu a aventura e tentou levá-la de volta para a casa. Não deu certo. Nessa altura, sua coragem e pontaria já tinham se espalhado pelas tropas. O comandante concordou que ela ficasse, mas exigiu que ela passasse a usar um saiote. Maria Quitéria participou ativamente de vários combates e acabou sendo condecorada pelo próprio Pedro I.
E o corneteiro? Bem, o corneteiro é o Luis Lopes, que desempenhava essa função na Batalha de Pirajá, que durou 10 horas nas cercanias de Salvador. Os brasileiros estavam em menor número, começaram perdendo e o comandante das tropas ordenou que Lopes desse o toque de retirada. Ele se confundiu e tocou “cavalaria, avançar e degolar”. Assustados e sem ver cavalaria nenhuma, os portugueses recuaram e deram espaço para os brasileiros avançarem e vencerem o conflito. Pessoalmente, acho esse caso meio mal contado, mas…
Luis Lopes entrou para a história e ganhou uma estátua em Ipanema, bem na esquina de Visconde Pirajá com Garcia D`Ávila, dois outros personagens da Independência da Bahia. Aliás, não são os únicos. Ipanema, imortalizada nas músicas de Vinícius de Moraes, que também virou nome de rua, possui apenas 21 ruas. Dessas, nada menos do que seis homenageiam heróis da Independência da Bahia: Maria Quitéria e Joana Angélica, o Visconde de Pirajá, o Barão de Jaguaribe, o Barão da Torre e o Garcia D´Ávila. Talvez seja o jeito que o Rio de Janeiro encontrou para se redimir do esquecimento de uma parte tão importante da nossa história.