Oseias e eu

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O que foi feito, amigo
De tudo que a gente sonhou
O que foi feito da vida
O que foi feito do amor
(Trecho de “O que foi De Vera”, Milton Nascimento e Fernando Brant)

E a coluna “A César o que é de Cícero”, do doutor em Literatura Cícero César Sotero Batista, nos conta uma história desde criacinha. História que nos transporta às nossas peraltices e a amigos cúmplices. Leia aqui a história de Oseias, um amigo de infância.




“Quando resolvi almoçar com a família lá para as bandas da praça Xavier de Brito, na Grande Tijuca, me veio um beliscão da imagem de Oséias, um amigo de infância.


À época, Oseias era mais conhecido como Zezé, que era assim que sua mãe o chamava quando não era para dar bronca. Zezé e a mãe moravam em uma casa pequena sem janela que ficava em uma vila de casas somente alcançada por uma escadaria grande o suficiente para quem quisesse se condicionar para uma subida da escadaria da Penha.


Brincávamos juntos. Brincadeiras sadias, outras, nem tanto. Eu tenho até hoje marcas de um episódio infeliz, fruto de nossos arroubos. Zezé e eu em plena guerra do Vietnã e o Vietcongue aqui acabou rolando metade da escadaria abaixo. Resultado: alguns pontinhos na cabeça, na língua, no queixo e nada mais.


Daquela vez não houve fratura exposta. Coisa de criança. Eu só fiquei triste porque a minha metraca da Estrela se partiu ao meio depois da fatídica queda. Um homem não abandona seu fuzil.


Tinha época em que o Zezé ficava fazendo nebulização em casa. O guerreiro não podia sair para nada, o jeito era ir brincar na casa dele, mesmo que úmida, abafada, parecendo nunca ter sido contemplada pela luz do sol.

Na casamata, a gente aproveitava as máscaras de nebulização para brincar de piloto que incendeiava o Forte Apache do General Custer, aquele vermelho, nos dizeres do Zezé.


Além da gente, eu me lembro também das irmãs Miranda, duas lindas irmãs gêmeas de fazer muito marmanjo ficar de queixo caído. As duas eram identicamente preciosas, mas o Zezé conhecia as sutis diferenças entre as duas.


Nas rodadas secretas de salada mista, mesmo de olhos vendados, Zezé sabia quem beijava. Primeiro era a Mari. Depois, a Tati. Elas preferiam o Zezé, mas não se queixavam quando saía eu. Pelo contrário, me davam trela, dizendo que eu ia dar trabalho quando crescesse. Eu achava graça daquilo tudo, porque tudo aquilo era bom. E também porque sempre soube guardar segredos.


Daquela vila da Grande Tijuca um dia me mudei. Ficou uma lembrança estranha da casa, difícil de confirmar pelas medidas da realidade. Para mim, o quintal findava em uma encosta enorme e negra, como se eu morasse ao pé do morro. Eu me lembro ou invento quando digo que me vejo passar a mão pela pedra como quem tateia o muro das lamentações? Não sei, não sei mesmo.

E aquela luz que vinha da janela, uma luz amarela que me fazia ver partículas de poeira que eu julgava serem matéria cósmica? Às vezes eu acho que me lembro demais de certas coisas.

As Mirandas eu nunca mais vi. Se as encontrasse, lhes diria que elas nem erraram nem acertaram a meu respeito. Mas o Zezé, quando foi a última vez que o vi? Bem, foi antes de 2018, sem dúvida. Eu estava neste restaurante aqui, à paisana, mais a família na mesma Xavier de Brito, a praça da minha infância.

Zezé passou por mim: estava mais gordo, muito de sua cabeleira já tinho ido embora, a exemplo de antigos carnavais. Mas eu o reconheceria de qualquer jeito, em qualquer situação, eu o reconheceria de olhos vendados.


Eu estava prestes a dizer: “Zezé, há quanto tempo, meu irmão. É o Domingos, cara, seu amigo de infância!”, quando identifiquei a diacha da camisa preta com a figura do Bolsonaro que ele, o Oseias, orgulhosamente ostentava.


Entrei em alerta máximo, por um breve momento. Perdi a fome e olha que era bacalhau. Me fiz de besta. Fiquei meio que com a garfo perto da boca. A minha família não reparou na minha súbita mudança, de como eu me fechei em segundos.


Então me vieram flashes: meus dedos sendo esmagados na porta porque não fui rápido demais; a cadeira sendo puxada justamente na hora que eu ia sentar com as irmãs Miranda morrendo de rir ao fundo; as histórias do Zezé sendo contadas na casamata, os efeitos benéficos do corredor polonês e das mantas, os segredos e confissões de um bom alicate, como ser homem e como não ceder a torturas de nenhuma espécie. Tudo isso me ocorreu em um átimo de segundo.

Deixei o chope pela metade, recusei o café, paguei a conta. A tarde estava ensolarada. Lá fora comprei para o meu filho uma guitarra amarela, daquelas infláveis. Ele gostou muito, gostou muito mesmo. Ele não quis andar de charrete.


Eu ainda tive coragem de passar naquele dia pela rua onde morei. Apenas para constatar que a escadaria não era lá tão grande coisa assim. Não servia como treino para quem quisesse subir as escadarias da Penha de joelhos. Eu tinha exagerado na dose.”

Foto do post: escadaria do Beco do Batman, local onde todas as paredes são grafitadas.

Sobre o autor

Radicado em Nilópolis, município do Rio de Janeiro, Cícero César Sotero Batista é doutor, mestre e especialista na área da literatura. É casado com Layla Warrak, com quem tem dois filhos, o Francisco e a Cecília, a quem se dedica em tempo integral e um pouco mais, se algum dos dois cair da/e cama.

Ou seja, Cícero César é professor, escritor e pai de dois, não exatamente nessa ordem. É autor do petisco Cartas para Francisco: uma cartografia dos afetos (Kazuá, 2019) e está preparando um livro sobre as letras e as crônicas que Aldir Blanc produziu na década de 1970.

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