Outro olhar sobre a Previdência

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Por Leonardo Valente, publicado em Projeto Colabora – 

Economistas heterodoxos remam contra a maré e dizem que o sistema é superavitário

O coro dos especialistas sobre a necessidade do remédio amargo da reforma da Previdência não é uníssono, como muita gente imagina. Enquanto a grande maioria dos economistas ortodoxos ressalta a importância das mudanças para se salvar as contas públicas, apesar dos problemas sociais que elas provocarão, especialistas de uma outra linha dos estudos econômicos, conhecida como heterodoxa,  afirmam que os ajustes serão nefastos para a própria atividade produtiva e que não há a necessidade de fazê-los  neste momento e com a magnitude anunciada, pois o sistema previdenciário é, na verdade, superavitário e não deficitário, como se propaga.

Na previdência rural, dados do INSS mostram que 99% das aposentadorias e pensões são de um salário mínimo. Foto de Yasuyoshi Chiba
Na previdência rural, dados do INSS mostram que 99% das aposentadorias e pensões são de um salário mínimo. Foto de Yasuyoshi Chiba

Não se trata de uma metodologia aleatória. Os elaboradores da Constituição de 1988 tinham plena consciência dos desafios e das dificuldades que a Previdência apresentaria para o futuro, e perceberam que não seria possível construir um sistema financiado unicamente pelas contribuições sobre a folha de pagamento e sobre os empregadores pois, com o aumento do ingresso de trabalhadores formais à atividade econômica, os custos das aposentadorias rapidamente superariam seus recursos. Criaram, portanto, um sistema com diversificação das fontes de financiamento e de captação de receitas, justamente para não apresentar déficits por um longo período, nem comprometer as contas do Estado. Foi uma proposta inovadora para a época, pois vários países da Europa, que desenvolveram amplos programas de bem-estar social, ainda mantinham seus sistemas previdenciários vinculados exclusivamente às folhas de pagamento, principal motivo de seus gigantescos déficits no setor.Denise Gentil, professora do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) é especialista em Previdência e uma das economistas que divergem fortemente do discurso dominante de que os gastos com as aposentadorias e pensões são uma bomba-relógio. Segundo ela, o cerne da questão é que existe uma distorção proposital na forma como se elabora o cálculo dos custos da Previdência no Brasil, o que produziria um déficit artificial. Para a professora, muitos especialistas e a grande mídia baseiam seus cálculos catastróficos apenas na receita da contribuição ao Instituto Nacional de Seguridade Nacional (INSS), que incide sobre a folha de pagamento dos trabalhadores e nos encargos pagos pelos empregadores, diminuindo dessa receita o valor dos benefícios pagos aos aposentados e pensionistas. Segundo ela, no entanto, o cálculo está errado, pois não obedece ao que foi determinado pela Constituição de 1988, que estabelece que essas contas devem incluir também a arrecadação de todo o sistema de Seguridade Social, e que envolve outras fontes de receita, como a Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Confins), a Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), rendimentos sobre as loterias, entre outras fontes. Uma vez respeitado esse cálculo, a pesquisadora afirma que resultado da relação entre receitas e despesas previdenciárias é amplamente superavitário, já incluídos os gastos administrativos com pessoal, custeio e pagamento da dívida de cada setor. Em 2010, o superávit em suas contas foi de R$ 56,7 bilhões, e em 2012, de R$ 78,1 bilhões. Em 2014 e em 2015, mesmo com as crises econômica e política e com as vultuosas desonerações tributárias, a Previdência teria, se respeitado esse modelo de cálculo, mantido seu superávit em R$ 56,4 bilhões e R$ 20,1 bilhões, respectivamente.




A partir dos anos 90, contudo, com as crises econômicas e com os enormes problemas fiscais enfrentados por vários governos, os elaboradores das políticas econômicas perceberam que o sistema de Seguridade Social havia se tornando uma grande fonte de arrecadação, que poderia ser aproveitada em outros setores das contas públicas.  Para isso, foram criados instrumentos legais, ainda que controversos, para se destinar inicialmente uma parte desse bolo para outros fins, e tapar os rombos dos gastos excessivos. Nos anos 2000, com a Lei de Responsabilidade Fiscal, veio a pá-de-cal na tentativa de alguns denunciadores de se tornar ilegal tal desvio: foi criado o Fundo do Regime Geral de Previdência Social, cuja receita é baseada unicamente na contribuição ao INSS dos trabalhadores e empregadores. Isso isolou a previdência das outras formas de financiamento da seguridade, o que gerou o déficit artificial, apesar de a Constituição ainda prever que o orçamento previdenciário corresponde à arrecadação de todo o sistema de Seguridade Social.

O tempo de contribuição, de 25 anos, e a idade mínima, de 65, praticamente extinguem as chances de aposentadoria rural. Foto Bernard Foubert/ Photononstop
O tempo de contribuição, de 25 anos, e a idade mínima, de 65, praticamente extinguem as chances de aposentadoria rural. Foto Bernard Foubert/ Photononstop

Com a nova forma de se interpretar os números, o déficit se tornou notório e preocupante e, diante do problema, a proposta é levar a cabo uma reforma considerada pesada até para economistas ortodoxos, que consideram o assunto prioridade na pauta nacional. Vários especialistas de bancos e agências de risco já se manifestaram afirmando que a dureza das medidas certamente faz parte de uma margem de concessão que o governo quer ter para negociar no Congresso. Se mantida na íntegra, no entanto, a lista de mudanças tem medidas que podem explodir as já precárias condições sociais da população mais pobre. Uma delas é a desvinculação da aposentadoria do salário-mínimo. Na previdência rural, por exemplo, dados do INSS mostram que 99% das aposentadorias e pensões são de um salário mínimo. A queda no poder de consumo desses benefícios pode provocar, em poucos anos, uma rápida deterioração das condições de vida nas zonas rurais e nas pequenas cidades. O tempo de contribuição, de 25 anos, e a idade mínima, de 65, se mantidos também para os trabalhadores rurais, praticamente vão extinguir as chances de aposentadoria deste segmento.  Por conta tanto das condições e do tipo de trabalho, quanto da expectativa de vida da população.

Por outro lado, enquanto o governo se esforça para mostrar que as contas da Previdência estão descontroladas, evita se pronunciar sobre as renúncias tributárias na área da Previdência Social que, só em 2015, foram de R$ 157 bilhões. Já a dívida previdenciária das grandes empresas chegou a R$ 350 bilhões no mesmo ano, por conta da falta de eficiência na fiscalização e na cobrança de dívidas relativas ao INSS.  Para Denise Gentil e outros economistas divergentes da reforma proposta, a solução está na reversão da metodologia do cálculo previdenciário – respeitando-se o que determina a Constituição -, no fim das isenções e no aumento da cobrança das dívidas das grandes empresas. Já os cortes e sacrifícios anunciados, de acordo com eles, além de atingirem duramente os trabalhadores, são um tiro no pé na economia e nos indicadores sociais e de desenvolvimento do país.

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