Ontem, algo inesperado ocorreu. Fui a uma consulta e, depois do exame físico, quando retornamos à mesa da médica, ela perguntou casualmente:
– E essa baderna do PT, hein?
Respirei fundo. Alguns dos motivos que haviam me levado até ali eram justamente os sintomas de estresse potencializados, sem dúvida, pela crise política (em particular, uma crise de uveíte anterior que insiste em retornar). Aliás, alguns dias antes, em consulta com outra (ótima) profissional, uma pergunta parecida havia sido feita e resultado numa discussão exaustiva.
Por alguns segundos, pensei em responder com um evasivo “Pois é”.
Mas só por alguns segundos. Se fugimos do debate, perdemos antes de começar. Assim, respondi que não achava aquela uma boa maneira de descrever o que estava acontecendo e mencionei os vários desmandos recentes do juiz Moro.
Ela me olhou com espanto:
– Você não gosta do juiz Moro? Eu sou louca por ele! Olha, depois de ver o Fantástico ontem, até tive vontade de mandar flores pra ele lá em Curitiba!
– O Fantástico explicou que divulgar grampos é ilegal? Que a mesma atitude resultou no afastamento do Protógenes em 2007?
– Hein?
– O Fantástico explicou que ele grampeou 25 advogados? O que é crime, pois as conversas entre advogados e clientes são protegidas? E que ele ainda listou os telefones como se eles trabalhassem para uma empresa do Lula, não para um escritório de advocacia?
– … Ah, Pablo, mas alguém tem que fazer alguma coisa pra acabar com essa corrupção toda do PT. Eles roubaram a Petrobrás c…
– Doutora, a sra. sabia que o próprio Fernando Henrique admitiu, na autobiografia, que havia sido informado sobre corrupção na Petrobrás e não fez nada por questões políticas?
– Não, eu não tô falando que o PT inventou a corrupção.
De repente, percebi algo estranho: ela não havia elevado a voz em nenhum momento. Não havia se expressado com raiva. Se havia algo em sua voz, era cansaço.
– É que eu não entendo esse povo que vai em manifestação pra defender a Dilma. – ela disse – Parece até que eles gostam de ser roubados.
– Eu fui sexta. A senhora acha que eu gosto de corrupção? Que aprovo? Que acho aceitável?
– Então foi por quê? Eu não consigo entender todo mundo de vermelho, defendendo um partido corrupto.
– Concordo com a senhora em um aspecto: eu realmente acho que seria, de um ponto de vista de imagem, mais interessante se houvesse mais cores nas manifestações. O vermelho é uma cor associada à esquerda antes de ser ligada ao PT, mas as coisas acabam se confundindo. Por outro lado, se as pessoas querem ir de vermelho, qual é o problema? O que é absurdo é ter gente apanhando por usar vermelho.
– Não, eu também não concordo com isso. Mas então me explica: por que você foi à manifestação?
Era uma pergunta genuína. Ela REALMENTE queria ouvir a resposta. E uma resposta detalhada foi o que ofereci. Apontei o fato de Dilma não ter sido acusada de crime algum; expliquei o que são as tais “pedaladas fiscais”; ressaltei que Temer e Cunha, os próximos na linha de sucessão, já foram acusados várias vezes e que Cunha, em particular, se tornaria na prática o vice-presidente (por incrível que pareça, ela não sabia); comentei o fato de que todas as vezes em que alguém da oposição era denunciado a investigação não ganhava continuidade e, finalmente, relembrei como na época de FHC nada era investigado e muito menos punido.
Ela concordou que Dilma não parecia interferir nas investigações. “Mas ela é péssima presidente”, ressaltou.
– Doutora, eu poderia passar a tarde inteira aqui discutindo tudo o que Dilma fez que já me decepcionou profundamente. Mas isso não é motivo de impeachment.
– Mas alguma coisa tem que ser feita. Pelo menos, o Brasil está sendo limpo.
– A senhora quer apostar quanto que, Dilma caindo, a Lavajato chega ao fim um ou dois meses depois? A oposição não tem interesse algum em ver as investigações continuando. Porque quanto mais a coisa volta no tempo, mais politicos dos outros partidos aparecem. A senhora notou como a conta da família do Aécio estava começando a aparecer e que agora ninguém fala mais?
Isto nos levou a uma pequena discussão sobre a mídia que não repetirei aqui. Em resumo: ela falou dos grampos e perguntei se ela havia ouvido na íntegra. Ela admitiu que não e sugeri que o fizesse. E completei:
– A senhora, aliás, não precisa acreditar em nada do que eu falei. Confere tudo no Google depois.
E foi aí que ocorreu algo que tornou a conversa memorável mesmo sendo uma repetição da mesma discussão que já tive tantas vezes: os olhos dela se encheram de lágrimas.
– Então o que você está dizendo é que não tem jeito pro Brasil. Que nada vai mudar, que tudo vai continuar do mesmo jeito.
Ela disse isso com uma voz rouca, trêmula.
(E aqui preciso fazer uma pausa para apontar algo que já havia me chamado a atenção: o consultório e a recepção da médica – uma profissional excepcional, diga-se de passagem – era repleto de imagens de Nossa Senhora e de versículos, além de trazer muitas reproduções de um certo personagem da ficção que não mencionarei para que ela não seja identificada. Isto já havia me levado a pensar que ela tinha uma certa… não sei dizer… ingenuidade? Inocência? Enfim: algo que se completava em seu tom de voz, que parecia frágil, quase infantil, embora ela provavelmente seja um pouco mais velha do que eu.)
Fiquei sem saber o que dizer. Ela, então, respirou fundo, riu e passou a me explicar quais exames eu deveria fazer antes de retornar para outra consulta. Quando ela terminou, falei:
– Eu só queria completar a nossa conversa dizendo duas coisas: primeiro, que é justamente por saber que a oposição quer manter as coisas como estão e ainda jogar toda a culpa para cima da esquerda que eu fico tão frustrado. E segundo: obrigado por ouvir sem brigar. É tão raro isso hoje em dia que só de conseguir falar sobre política com alguém que tem posição diferente e não ouvir gritos eu já fico feliz.
– Eu acho importante ouvir o que as pessoas têm pra dizer. E você me falou um monte de coisas hoje que eu nunca tinha pensado. Vou ter que pensar nisso. Não sei se vou concordar com você, mas…
Embora aquela tivesse sido minha primeira consulta (ela já atende pessoas da família há anos), eu a abracei e disse que tinha sido um prazer conhecê-la.
E saí do consultório muito, muito, muito feliz – e cheguei a comentar isso ontem no Twitter.
Esta felicidade vinha não só da constatação de ter conseguido expor um pouco do lado da esquerda para alguém que não parecia receptiva a isso, mas, principalmente, por ter tido meus olhos abertos por ela.
Ela não era “golpista”. Não era “reacionária”. Não era “anti-pobre”. Não era eleitora do Bolsonaro. Era simplesmente uma pessoa que, guiada pela mídia, sinceramente acreditava que as intenções de Moro e da oposição eram as mais nobres possíveis e que o PT e o governo estavam, por si só, “destruindo” o Brasil.
Era, enfim, alguém com quem o diálogo era possível e que, mesmo que não mude de ideia, ao menos terá uma visão um pouco mais complexa acerca do que está acontecendo no Brasil.
Ao final, havíamos passado mais tempo conversando do que envolvidos numa consulta médica propriamente dita. Todo o papo durou uns 40 minutos, no máximo.
Mas saí me sentindo como se houvesse sido medicado. E, de certa forma, fui